sexta-feira, 4 de março de 2011

Jornada ao Fim da Primavera

Tudo começou por culpa dele próprio. Quem mandou ficar me provocando daquela maneira? Ele achava mesmo que eu não teria coragem? Quis pagar pra ver e teve uma baita decepção.

Eu saí de casa deixando a porta aberta e corri pra não ver que ele vinha atrás, sem entender nada, disposto a me convencer a ficar.
Fugi. Fugi de dois anos de alegria, porque era desesperador ver no que tinham se tornado. Fugi do dinheiro que eu havia perseguido, fugi da esperança, fugi do sonho. E acordei num lugar totalmente novo, resolvida a nunca mais pensar no passado, nem para lembrar as coisas boas, nem para lamentar as coisas ruins.

Tudo o que eu tinha era o presente, iria pensar apenas em preocupações que fossem imediatas e naquele exato momento minha única nescessidade era... escovar os dentes!
Mas voltar para a minha casa estava fora de cogitação. Eu nunca mais pisaria naquele lugar de novo! Um chiclete de menta ia ter que resolver o meu problema por enquanto.

E foi exatamente ao comprar o chiclete que eu tive a certeza do que eu queria fazer em seguida: na padaria tinha um cartaz, um comercial de cigarro, que mostrava a foto de uma montanha cheia de neve. Eu sempre quis ver a neve e só há uma região aqui no Brasil que neva: O Sul.

Decidi que era para lá que eu iria. Ainda estávamos na primavera e eu tinha tempo suficiente para chegar e me estabelecer até o inverno. Seria perfeitamente possível. Eu podia pedir carona, roubar um carro, me esconder num caminhão, e por fim, se não quisesse fazer nada disso, ainda podia andar.
O importante era que, depois de muito tempo, eu finalmente tinha vontade de fazer alguma coisa fora da rotina na minha vida.

Comecei pedindo carona num ônibus que estava indo para a Avenida Brasil (esse era o meio mais prático de sair do estado, até onde eu sabia). Não foi muito difícil. Disse ao motorista que havia sido assaltada (minha bolsa tinha mesmo ficado em casa) e ele me deixou subir sem problemas. A viagem era um pouco longa e tive tempo de sobra a sós com meus pensamentos, apesar de que a última coisa que eu queria era pensar em nada que fosse relacionado ao meu cotidiano e à vida que eu estava deixando pra trás.

Enquanto estive sentada no ônibus, fiquei lembrando de um trecho de um livro do Érico Veríssimo: "Conhece a história do perú? A gente risca com giz um círculo em volta dele e o cretino acredita que está preso. Não seja como o perú. Atravesse o círculo."
No momento aquilo tudo fazia muito sentido para mim. Eu havia ficado quietinha dentro de meu próprio círculo por muito tempo, mas eu não estava presa. Podia ir embora a hora que quisesse, pra onde quisesse e era isso que eu estava fazendo agora.

Desci do ônibus no último ponto que ele faria na Avendia Brasil. Estava num lugar feio, estranho, não quis saber o nome...
Esperei um ônibus que me levasse ainda mais longe, o que não demorou muito.

Encontrar uma carona na Dutra já não foi tão fácil. Alguns carros paravam, mas eu não sentia confiaça para ir com eles e eu acabava dando uma desculpa qualquer e deixando eles irem embora, outros nem diminuíam a velocidade (esses eram a maioria).

Já estava no fim da tarde quando um rapaz parou um Uno azul no acostamento. Ele era magro, usava uma camisa de flanela e era tão pálido que parecia até um pouco doente, mas alguma coisa nos olhos dele me dizia que ele era confiável. Aceitei a carona.
Ele dirigia calado. Ouvia uma música bastante interessante e um pouco depressiva. Preferi não falar nada também.
Foi só no meio da noite que começamos a conversar. Ele perguntou se eu queria parar pra comer alguma coisa, eu disse que tudo bem. Nenhum dos dois tinha muito dinheiro (eu na verdade só tinha algumas moedas) então compramos umas frutas na beira da estrada e paramos no acostamento para comer.
Ele me agradeceu por não ter feito nenhuma pergunta no caminho (não estava muito disposto a coneversar naquele momento) e disse que me retribuiria fazendo o mesmo: sem perguntas! Queria apenas saber onde eu queria que ele me deixasse. Eu disse que o mais próximo possível da estrada que vai para o Paraná.
Depois disso voltamos pro carro e conversamos assuntos leves. Livros, música, estrelas e filmes...

Na manhã seguinte passamos por lugares belíssimos. Quilômetros de montes e planícies de grama verdíssima e cobertos pelas flores de primavera. Em uma certa altura havia um lago, um pouco afastado da estrada. Parecia um oásis no meio de um deserto de asfalto. Concordamos em parar o carro no acostamento e nos aproximar do lago.
A grama ainda estava úmida pelo orvalho da noite anterior e o sol já começava a esquentar. Ele sentou à beira do lago e começou a tocar seu violão. Eu não pensei duas vezes e mergulhei. De roupa e tudo!
Foi um dos momentos mais agradáveis que já vivi. Ficamos deitados na grama até o meio dia, desfrutando de uma paz profunda e totalmente desconhecida. Quando o sol já estava quente e minhas roupas já estavam secas voltamos ao carro.

Chegamos à São Paulo no final da tarde. Ele disse que ainda não estava pronto para voltar à realidade e se ofereceu para me levar até o Paraná. Eu aceitei, muito agradecida.
Entramos num shopping, ele sacou dinheiro e jantamos. O dia havia sido ótimo e nós estávamos realmente felizes. Meu novo amigo resolveu que preicisávamos de mais algumas coisas para uma viagem tão longa.
Comprou pra mim um vestido, um casaco e uma escova dentes (que foi o melhor presente que eu poderia ter recebido no momento!). Comprou algumas coisas para ele também.
Disse que não queria mais juntar dinheiro. Que odiava o dinheiro e queria trasformá-lo em alguma coisa útil. Compramos comida (muita!), cd's, alguns livros e depois fomos dormir num hotel bem legal.
No dia seguinte, quando acordei ele já estava pronto para partir. Havia acordado cedo e comprado um quantidade imensa de gasolina (os garrafões estavam enchendo o porta malas).

A carona até o Paraná se estendeu até o Rio Grande do Sul.
Ficamos uma semana na estrada e quando chegamos já nos considerávamos verdadeiros amigos. Ele me revelou que nunca mais iria voltar pra casa. Relsovera continuar viajando até acabar o dinheiro para gasolina e depois... quem sabe o que poderia acontecer?
Perguntou se eu queria ir com ele até a Argentina, mas eu respondi que não. Queria mesmo ficar no Rio Grande do Sul até o inverno.

Nos despedimos na estrada. Passávamos por um vinhedo e as árvores estavam lindas. Decidi que era ali onde eu tinha que ficar.
Ele parou o carro e ficamos nos olhando em silêncio por alguns instantes. Eu não sabia o que dizer! Tinha sido uma sorte muito grande tê-lo encontrado e eu não conseguiria colocar minha gratidão em palavras.
Permanecemos olhando um para o outro por mais algum tempo até que por fim pareceu que nossos olhos encontraram uma forma de se comunicar, pois eu pude ler nos dele o que ele nunca conseguiria dizer e sei que ele também compreendeu os meus. Finalmente eu saí do carro, sem dizer nenhuma palavra, mas com a impressão de que nunca tinha sido tão compreendida em toda a minha vida.
O Uno desapareceu pra sempre numa curva florida.

Eu estava mais longe do que jamais estivera em toda a minha vida. Parecia que ali, naquele lugar mágico onde o ar cheirava a uvas, nada do meu passado poderia me machucar. Todos aqueles sentimentos estavam para trás e eu podia pensar claramente, sem medo de que eles atrapalhassem o meu raciocínio.
Fui caminhando pelo vinhedo e decidi que era hora de lembrar. De repassar os fatos e minhas impressões pessoais sobre eles, pôr um ponto final onde havia ficado reticências.

Comecei analizando meu último dia no Rio e aquela briga fatídica que tinha acabado com tudo.
Eu sempre parti do princípio que tudo que uma pessoa de confiança me dissesse é verdade (é mais fácil do que viver desconfiando das pessoas que eu amo) então, sabendo disso, desde que ele havia conquistado a minha confiança (especialmente depois que passamos a morar juntos) ele já sabia que devia pensar bem antes de qualquer coisa que me dissesse, porque eu acreditaria!

Pois bem. O motivo da briga nem era tão forte assim (já haviam tido piores): um simples telefonema! Custava ele ter me esperado terminar? Mas não! As coisas tinham que ser feitas sempre na hora que ele queria!
Desde que ele tinha conseguido aquela maldita promoção, sentia-se o chefe do mundo! Nem de longe lembrava o romântico professor de literatura de cinco anos atrás.
A briga (praticamente um monólogo) começou com os resmungos dele e várias coisas bastante injustas começaram a ser jogadas na minha cara:
"Eu sempre me esforço para fazer tudo o que você quer" (mentira),
"sou sempre eu que peço desculpas" (mentira),
"você nunca reconhece que está errada" (mentira).
Menira, mentira, mentira!!!

A discussão já estava ficando irracional. Eu peguei a chave para sair e dar uma volta e nessa hora ouvi as palavras que tornariam aquele o momento mais dramático do nosso relacionamento:
"Vai, foge da briga outra vez! Você sempre volta mesmo!" Isso foi dito de uma forma bem pouco romântica. A intenção era me atingir e conseguiu. Respondi sem conter a raiva em minha voz:
"Olha que um dia eu posso não voltar... "
"Só se eu tivesse muita sorte!"

Um misto de choque e decepção me atingiram como um golpe no estomago. Dei a ele cinco segundos para pensar no que havia dito e se retratar (o raciocínio dele consegue ser bem rápido para ofender, então podia usar a mesma agilidade para se desculpar), mas ao invés de aproveitar a oportunidade, ele tratou de se jogar na própria cova:
"O que foi? Tá aí parada por quê? Desistiu?"

Bati a porta na cara do cretino e saí, com um sentimento de liberdade que há muito tempo eu não experimentava.

O som da porta batendo ecoou novamente na minha memória: um ruído surdo e precipitado ocupando o espaço de um diálogo sério que nunca havia existido:
Lembrei do silêncio magoado que sempre se colocava entre nós dois quando ele me peguntava o que estava errado. Das palavras que eu nunca disse, mas que me consumiram furiosamente quando ele me perguntou porque estávamos brigando tanto ultimamente. E de todas as vezes que respondi com ironia quando o ouvia dizer que queria me fazer feliz.

Percebi que nunca havia realmente tentado fazê-lo enxergar o quanto havia mudado. Eu o culpava em silêncio, tentando não me envolver em discussões. Esperava que ele percebesse por si mesmo que eu estava infeliz... e a porta se fechou.

De repente, no meio de todas aquelas árvores eu descobri estava sozinha de novo. Que quando as flores da primavera morressem e não pudessem mais colorir o meu caminho o verão seria vazio e o inverno seria frio demais.
As palavras que ouvi durante a minha jornada voltavam em minha lembraça, mas faziam um sentido totalmente diferente desta vez: "Vou viajar até acabar o dinheiro da gasolina". "Não seja como o perú".

Talvez o perú não fosse mesmo tão cretino. Talvez ele fosse apenas sábio o suficiente para compreender que tudo o que ele precisa está realmente ali, dentro do círculo de giz. E talvez... durante a noite, quando ninguém está vendo, ele saia tranquilamente para dar o seu passeio.
Sim, esse mundo imenso e infinito é interessante apenas para um passeio descompromissado, mas quando o verão acabar eu posso querer estar dentro do meu círculo e voltar para quem é realmente importante pra mim.

Caminhei o resto do dia pelos vinhedos. O cheiro doce do ar perfumava as lembranças da viagem, que me acompanhavam com uma sensação de sonho acordado, de fim de primavera.

3 comentários:

Adinalzir disse...

Aí está uma bela história real. Infelizmente na vida, temos que tomar essas decisões difíceis.
Valeu pela visita ao Saiba História! :)

Lívia Chasez disse...

Sua cara esse conto..rs. Não teve mt suspense, mas foi legal. :)

Não vai ficar mal acostumada!! haha
=]~

Heidi Costa disse...

Já era! Já me mal acostumei, Livinha!
Acho que o Sono profundo (em baixo do Fim de Verão) é mais o seu estilo!

Professor Adinalzir:
Obrigado pela visita, já virei frequentadora do Saiba História.

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