terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Em tempo



As gotas daquela estranha chuva caíam e eu não conseguia parar de contar. 943, 942, 941 e lá vinha outro. Será que ninguém mais percebia? Fazia quatro dias e eu sabia que o tempo estava acabando. Parte de mim queria ficar aliviada e até ansiosa para que tudo simplesmente acabasse logo, mas a verdade é que as horas dos últimos quatro dias eu passei num estado de pânico crescente. O que será que vai acontecer quando cair a última gota?
Faltava pouco tempo agora para eu descobrir.
Aproximei a taça mais uma vez e o sabor do Syrah me trouxe de volta a lembrança do momento em que tudo começou (a lembrança passava como um filme em minha memória, mas aquela outra parte do meu cérebro não parava de calcular 901, 900. Outro. E agora só restavam 15 minutos).
Lembrei daquela noite. Já era próximo das onze, eu havia subido nas pedras e observava as ondas do mar. No caminho, um rapaz alcoolizado havia acabado de tropeçar e sua boca estava sangrado, mas seus amigos estavam sorrindo e pareciam achar que a situação era mais cômica do que grave, então continuei subindo e deixei pra trás suas risadas.
Lá em cima, assim como agora, eu também tinha uma taça em minha mão, e também estava perdida em uma lembrança. Mas o vinho era um Merlot e a lembrança era mais antiga. Eu havia subido ali para rememorar o acidente de 4 anos atrás e não tinha muita certeza de que iria descer novamente.
Os acontecimentos rodopiavam em minha memória numa velocidade sufocante, e eu só enxergava os momentos em que eu poderia ter feito algo diferente, algo que evitasse aquilo tudo. Quatro dias antes eu poderia ter simplesmente desistido de ir, na véspera eu poderia ter sugerido uma mudança de planos, 15 minutos antes... foram tantas oportunidades. Literalmente qualquer coisa ação minha em qualquer momento dentro daqueles quatro dias podia ter mudado tudo. Será possível que o universo era assim tão meticulosamente calculado? Que cada decisão tomada era exatamente aquela uma em um milhão, que somando-se às outras, nos conduziram pela mão àquele terrível destino?
O vinho tinha acabado e a espuma das ondas era hipnótica. Me levantei e caminhei para a beirada... talvez eu devesse me aproximar um pouco mais...
E foi nesse momento que ele se aproximou. Usava um chapéu e um sobretudo, eu não pude ver ser rosto nem ao menos precisar detalhes sobre sua aparência. Ele me entregou um papel que continha apenas o número 345.600 e disse “espere por esse número”.
Antes que eu pudesse responder o homem se virou e desceu o caminho de pedras com uma habilidade e velocidade impressionantes! Fiquei observando enquanto ele descia. O estranho bilhete estava em minha mão, a taça havia caído no mar com o susto. Eu ia voltar a contemplar o mar, mas no momento em que o sujeito misterioso pisou na areia começou uma chuva – essa chuva.
Peguei a garrafa vazia e um pingo vermelho caiu em meu nariz. Não dei muita importância e comecei a descer. Como a perda estava escorregadia eu precisava me concentrar e apelei para uma técnica que sempre utilizo quando preciso de foco: contar os segundos. Um, dois, três, quatro, cinco... fui descendo com cuidado. Dez. Uma gota vermelha pinga em minha mão e eu atribuo à garrafa de vinho, tentando tomar mais cuidado pra que ela não cause manchas maiores.
Eu consigo ver o grupo de amigos do rapaz que se acidentou. Eles estão cantando felizes, como se nada tivesse acontecido. O rapaz não está no meio deles. Quarenta e sete, quarenta e oito, quarenta e nove, cinquenta. Dessa vez eu percebo: uma grande gota vermelha, bem nítida se junta à cortina de gotas de água, caindo numa poça qualquer.
Curiosa, eu redobro a atenção à minha contagem e agora tenho certeza, a cada dez segundos a gota vermelha volta a cair. Eu paro de descer por tempo, para testar essa teoria e rio da minha própria fantasia. Devo estar perdendo a cabeça. Continuo a descer, intrigada. A cada dez segundos a graça inicial dessa descoberta se enfraquece mais um pouco, cedendo lugar para uma estranha inquietação. Passo pelo rapaz alcoolizado e o vejo tropeçar e cair – outra vez – ele se levanta com a boca ensanguentada, exatamente como anteriormente e o grupo de amigos vem em sua direção rindo e fazendo piada.
Eu apresso o passo e chego à areia. Agora estou oficialmente assustada.
Não consigo parar de contar os segundos e agora tenho a assustadora impressão de que estou presenciando, neste caminho de volta, os mesmos acontecimentos que observei quando estava vindo. Uma moça de saia vermelha cruza as pernas num banco. Um senhor muito idoso tenta acender um cigarro, um cachorro encontra um pedaço de osso num saco de lixo. Não é bem como se eu estivesse vendo um filme ao contrário, com pessoas andando de trás pra frente e ou acontecimentos se desfazendo, mas como se aquelas cenas estivessem apenas se repetindo, do início, como se nunca tivessem acontecido antes.
Chego em casa trêmula e em pânico e demoro um pouco para reparar que o bilhete ainda está na minha mão. Eu tento reconstituir os acontecimentos, reconhecer alguma característica especial do homem misterioso, entender qual o significado daquele número. Minha cabeça dói, eu continuo contando, agora involuntariamente, apenas porque não consigo parar. Uma parte de meu cérebro ativou alguma espécie de calculadora automática. 1230, 1231. Mas o que significam as gotas vermelhas? Por que os intervalos de dez segundos?
Os segundos tornam a madrugada insuportável. Deitada na cama, exausta e em pânico, eu só consigo amaldiçoar o encontro com aquele estranho. Tenho certeza que de alguma forma ele é o culpado do que está acontecendo. Se a menos eu pudesse voltar no tempo, nunca teria subido aquelas pedras, nada disso estaria acont... e de repente eu simplesmente sei!
Levanto calmamente da cama, vou até a sala, e pego uma calculadora, já sabendo qual será o resultado do cálculo: trezentos e quarenta e cinco mil e seiscentos segundos. Quatro dias. Não é uma sequencia infinita, é uma contagem regressiva. Os pingos vermelhos me sinalizam quando os momentos estão sendo reiniciados, sinalizam minha janela de oportunidade para voltar e interferir nas cenas ao meu redor.
Faço mais um cálculo apressado: já se passaram 18.000 minutos. Isso significa que eu tenho mais 327.600 segundos, 32.760 janelas para mudar tudo que quiser nos últimos quatro dias! Automaticamente a contagem automática do meu cérebro se atualiza: 327,599.
De volta ao presente, enquanto saboreio mais um gole do Syrah, sinto um desconforto ao lembrar de como esses últimos dias foram corridos, de como eu me senti invencível nas primeiras mudanças e de como, no final, me sinto tão derrotada. Tudo que fiz, correndo como louca contra o tempo, travando estratégias, magoando pessoas, evitando acidentes... foi tudo tão... inútil. Nunca me senti tão vazia, tão sem importância, tão irrelevante em toda a minha vida.
300, 299, 298.
Quatro dias não importam. Nada do que acontece tem significado nenhum, mesmo quando nos esforçamos para significar momentos e acontecimentos através de nossas ações. Qualquer importância é ilusória, fruto de nossas próprias vontades e sensações.
Acabo me dar conta de que esses quatro dias foram o período mais longo que passei sem pensar sobre o acidente e lembrar dele agora me deixa constrangida. Imaginar que chorei tantas noites, que senti como se toda a dor do mundo estivesse dentro de mim. E agora, não consigo convocar sentimento algum para associar a ele. Apenas uma profunda indiferença.
É como se o universo inteiro pudesse ser resumido numa única sílaba e eu sinto que que estou prestes a descobrir qual é.
50, 49,48
Não há meticulosidade no universo. Ninguém está nos guiando pela mão para futuro algum, seja ele bom o ruim. Tudo é apenas o caos.
10, 9, 8
A última gota do vinho se acabou.
3,2,1
Blah.


terça-feira, 3 de outubro de 2017

Lógica temporal

Nós sempre achamos que ele era muito ansioso e ele sempre nos garantiu que isso não era verdade.

“Vocês é que não sabem perceber quando as coisas terminam! ” Ele insistia.

Nem eu, que era o melhor amigo dele, acreditava nessa justificativa. Mas também! O cara parecia nunca entender como o tempo no mundo normal funcionava! Desde criança, ele tinha mania de levantar pra aplaudir as peças de teatro bem antes do final – às vezes no meio de um diálogo! 

Levantava do cinema pra ir embora bem no meio dos filmes, trocava de estação de rádio num momento totalmente aleatório da música que ele alegava ser sua preferida, levantava da mesa de pôquer bem no meio de uma partida – muitas vezes quando estava ganhando!

Com o tempo, poucos de nós ainda tínhamos paciência para sair com ele. A maioria ficava aborrecido ou morrendo de vergonha das suas... excentricidades.

Mas agora que eu paro pra pensar, digamos assim, “à luz dos acontecimentos”, dá pra perceber que o problema dele não era exatamente ansiedade. Os sinais estiveram sempre ali.

Em primeiro lugar ele nunca, nunquinha mesmo usou um relógio. Até o do telefone celular ele deu um jeito de deixar todo doido! E outra coisa curiosa: às vezes ele também demorava pra perceber quando as coisas começavam. Desde jantares, onde volta e meia ele simplesmente ignorava o prato que estava à sua frente (muitas vezes saía do restaurante sem comer e reclamando de fome), até algumas coisas bem mais difíceis de se confundir sobre seu início, como por exemplo, shows musicais, aulas importantes (em que ele era o professor!) e até algumas das entrevistas que ele às vezes cedia para jornalistas. Ficava sempre com aquele olhar perdido de quem tava esperando alguma coisa.

 Mas a melhor de todas foi a vez que a namorada dele virou na frente de todo mundo no bar e começou a chorar, dizendo que não aguentava mais, que o amava muito, mas que tinha que terminar o namoro.
Acho que nunca vi um olhar mais espantado na cara de uma pessoa em toda a minha vida! Ele se virou pra ela, com a mais genuína das surpresas e perguntou: “A gente tava namorando?? ” A coitada soluçou mais alto ainda e saiu correndo enquanto ele murmurava um “me desculpe”, ainda estupefato!

A gente devia ter percebido alguma coisa nesse dia!

Eu continuava amigo dele porque sabia que ele não fazia por mal. Cada um tinha suas esquisitices e essa era a dele. Mas os momentos que a gente se encontrava na mesma “lógica temporal” eram simplesmente mágicos! Eu nunca conheci uma pessoa que fosse, ao mesmo, tempo um ouvinte tão atento e um orador tão genial!

Quando eu desabafava com ele sobre os problemas da minha vida ele ouvia com tanta atenção, tanta sensibilidade e tanta inteligência que eu saía da conversa mais aliviado do que se tivesse, de fato, resolvido o problema.

E quando ele falava... ele não era mais esquisito. Ele simplesmente... sabia! Não é que ele  conhecesse muito bem o tópico em questão – o que, aliás, normalmente era o caso, para todos os tópicos que eu pudesse imaginar – mas ele sabia.
Eu nunca tive certeza exatamente do quê, e muitas vezes me achei bobo imaginando que ele sabia do infinito.

Mas ele nunca quis saber do infinito! Ele queria saber do mundo, da vida! Desse mundo onde ele nunca se encaixou e dessa vida que ele nunca realmente entendeu.

Ou será que foi só ele que entendeu de verdade?

Hum... quer saber?
Eu tinha muito mais coisa pra falar sobre ele, mas acho que essa última frase era exatamente a hora que ele se levantaria, aplaudiria discretamente, e iria embora.

Vamos segui-lo!

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Algodão

- Um brinde à essa vitória!
- Um brinde? Sério mesmo?
- Sério, ué! Qual o problema?
- Me parece um pouco... inapropriado. Dadas as circunstâncias...
- As circunstâncias? As únicas circunstâncias que importam aqui é que tudo está resolvido. Você está bem, eu estou bem... você está VIVA! Quer me dizer que isso tudo não merece um brinde?
- Talvez você tenha razão...
- Claro que tenho 

Ele respondeu e o som macio da rolha se abrindo fez refrão à sua certeza.

- Vinho? Tem mesmo que ser uma bebida tão... vermelha?
- Ei, o vermelho sempre foi sua cor preferida. Eu não vou deixar você perder mais iss...
- Tudo bem, tudo bem. Você está certo. Só me deixa lavar as mãos primeiro.
- Do que você está falando? Suas mãos não estão sujas.
- Tá brincando? Olha só pra elas!

Estendo minhas mãos ainda trêmulas pra que ele veja, enquanto eu mesma desvio o olhar. Ele toma minha mão direita e a leva até o seu próprio rosto, com gentileza. Eu só posso observar enquanto sua face, seus olhos, seus cabelos tornam-se rubros ao meu toque.
O ar está pesado e ainda ecoa os últimos momentos vividos neste lugar, mas agora, ao invés do pavor, é algodão que preenche cada milímetro ao nosso redor: uma matéria suave feita de alívio e perplexidade que pesa sobre meus ombros e dentro da minha alma como a mais macia das nuvens de primavera.
Estou hipnotizada pela quantidade de sensações que disputam minha atenção nesse novo silêncio, enquanto compartilho com um cúmplice involuntário as evidencias viscosas de minhas últimas ações. E ele está tão ansioso para fazer parte de tudo isso, para demonstrar que está ali, ao meu lado, mesmo nesse momento que ele não tem condições de compreender! Não completamente.
Sua lealdade inocente me traz aos lábios um sorriso exasperado e ele percebe.

- Você acha que eu sou um completo tolo, não é? Acha que eu não sei nad...
- Você não é tolo. Você é a companhia mais leal que eu já tive em muito tempo... talvez a mais leal de todas. Mas não. Você simplesmente nunca vai poder compreender completamente. E isso é bom. O fato de você estar aqui seria suficiente. O seu apoio mesmo sem a compreensão total é muito mais do que eu poderia pedir e mesmo assim você me ofereceu.

Eu sirvo o vinho em duas taças e entrego uma delas em sua mão.
Ele brinda comigo feliz, bebendo ao que ele considera uma grande primeira vitória num longo caminho de aventuras e conquistas.

Mas minha taça está cheia de um algodão adocicado que brinda apenas a fugacidade deste momento de esperança. Ainda que ela não seja minha.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Peixes e a lembrança

De repente eu simplesmente pisquei os olhos e acordei. Com a pior das lembranças. (Mas eu nem estava dormindo).
Acordei com a lembrança de tudo que eu tinha esquecido. Cinco anos inteiros!
Mas da mesma forma que eu não estivera dormindo, eu também não tinha esquecido. Eu estava acordado e lembrava perfeitamente de tudo.
Até o momento que eu acordei de estar de estar acordado e lembrei de tudo que minha lembrança me tinha feito esquecer.

Meu primeiro esquecimento tinha sido o de perdoar.
Eu não me perdoei por te querer tão errada, não te perdoei por não ter me aceito. Não me perdoei por ter insistido e não te perdoei por ter se rendido. Não te perdoei por me propor mudanças, não me perdoei por ter me divertido tentando. Não te perdoei por ter tentado, não me perdoei por ter conseguido. E neguei.

Meu segundo esquecimento foi negar. 
Eu neguei que não te quis e que te queria. Eu neguei que tínhamos tudo pra dar errado e depois neguei que fracassamos. Eu neguei que valia a pena tentar de novo e de novo e de novo. E até agora, quando eu finalmente me lembro, eu acho que continuo negando.
Eu neguei que você estava do meu lado (mas agora que você não está mesmo!).
 Eu neguei que estava errado (mas te neguei o direito de estar errada).
 E neguei que você estava certa. Ainda agora, quando eu acho que já lembro de tudo, não posso deixar de te negar isso. Eu conheço todas as suas certezas, e eu lembro de todas elas.

E meu terceiro esquecimento foi lembrar.
Eu simplesmente me lembrava de absolutamente tudo!
Eu me lembrava de como você havia me ferido e de como seria injusto que esquecer disso. Eu me lembrava de como eu havia te ferido e de como esses ferimentos eram uma justa retribuição aos que você tinha me causado. Eu me lembrava de como eu queria estar ao seu lado e de como era tão difícil estar com você.
Eu me lembrava de tudo que havia te prometido ser e então me lembrava de como o seu cinismo me eximia da difícil tarefa de tentar cumprir minhas promessas.

E meu último esquecimento foi a dor.
A dor de perceber que eu não era quem eu te prometi que seria. A dor de perceber que você nunca foi a pessoa que eu achei que você poderia ser. A dor de perceber que eu tentei. A dor de perceber que você tentou. A dor de perceber que nenhum dos dois percebeu as tentativas do outro.
E esse último esquecimento se trancou num cofre com todos os outros. Num cofre de alívio onde os acontecimentos passaram a existir apenas numa memória flexível de datas, cheiros, sorrisos, lágrimas... mas as lembranças permaneciam completamente protegidas no esquecimento de seus significados.
Até o momento que eu acordei e lembrei.

Mas que droga! Agora estou percebendo que naquele momento, alguns instantes atrás, eu estava apenas começando a lembrar. Eu não tinha lembrando de tudo.
Foi esse texto, cuja intenção inicial era de me aliviar, que completou a tarefa das lembranças!
Ou será que completou mesmo?
Afinal, é tão mais fácil chamar essa reflexão de um novo estágio do esquecimento e tentar ir dormir em paz...


segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Todo Mês

Eu não conseguia mais lembrar há quanto tempo estava escalando o muro ao final daquele caminho sem saída e muito menos porque havia decidido começar esta atividade insana em primeiro lugar! Mas a noite já havia caído, a parede à minha frente estava mal iluminada e eu não fazia a mínima ideia de quantos metros ainda restavam acima de mim. Só sabia que já estava alto demais para desistir e pular de volta para o chão.

                O dia havia começado promissor: eu acordei no longo corredor, após incontáveis dias de jornada. A essa altura eu ainda não sabia que este caminho estaria bloqueado por um gigantesco muro no final. Eu me sentia confiante, pois após tantos dias de jornada eu claramente já deveria estar há poucas horas de alcançar meu destino. Segui o estreito caminho observando as diversas pinturas nos muros que flanqueavam os dois lados da rua. Havia momentos em que essa sensação de ter apenas uma opção de direção a seguir me angustiava, principalmente nos trechos em que os muros estavam sem pintura, ou apresentavam gravuras deprimentes, sombrias e amedrontadoras. No entanto, havia muitos trechos coloridos e alegres que reforçavam a minha esperança de que, no final daquela caminhada, eu encontraria o paraíso que me havia motivado a começar a jornada em primeiro lugar.
                De fato, eu caminhava tão seguro de que já estava próximo ao meu destino, que resolvi abrir mão do racionamento de comida e água que eu vinha fazendo desde o princípio da caminhada e me permiti o quase esquecido prazer de comer até não ter mais fome e beber até não ter mais sede. Experimentei uma sensação tão plena de satisfação que cheguei a ficar eufórico enquanto observava as promessas de belas praias e infindáveis horizontes desenhadas nos muros ao meu redor.
                O sol aquecia meus sonhos enquanto uma leve brisa acariciava minha pele quando eu vi a curva se aproximar. Corri em sua direção, mal podendo conter meus pés com a ansiedade de ver o que estaria depois dela. E foi então que eu o vi: o gigantesco muro – tão alto quanto as paredes ao meu redor – que marcava o final de meu caminho.
                O choque dessa visão me atordoou de tal forma que eu caí sobre meus joelhos, e, por alguns instantes, não fui capaz nem ao menos de formular um pensamento de frustração. Eu apenas olhava para a projeção de minha própria sombra, comparando-a com a gigantesca estatura do obstáculo à minha frente. 
                Resolvi avaliar minhas possibilidades: por um lado, voltar todo o percurso que eu já havia percorrido me parecia impossível! Eu já não tinha mais recursos, forças e nem ao menos ânimo para escolher outro caminho e recomeçar do zero. Por outro lado, meus olhos nem ao menos conseguiam vislumbrar o final da escalada que se apresentava à minha frente e eu sabia que seria uma tarefa hercúlea ultrapassar aquele trecho; mas o muro estava pintando com as mesmas gravuras alegres sugerindo que além dele ainda podiam estar os mares e pomares que eu tanto almejava.
              Por isso, resolvi reunir as últimas forças que me restavam e dar o melhor de mim para cumprir aquele que eu esperava ser o último desafio antes de meu tão esperado descanso.
                A noite caiu e meus músculos já doíam tanto com o esforço da escalada que eu só conseguia pensar em desistir: me deixar cair de volta ao chão e talvez, se eu conseguisse não me quebrar muito, poderia até mesmo voltar ao início de tudo e tentar outro caminho! Minha respiração estava ofegante e eu não conseguia parar de amaldiçoar o momento que havia começado minha caminhada. Todas aquelas promessas pintadas nos muros não passavam de um deboche, de uma forma de me mostrar como a minha vida poderia ter sido tão melhor e mais feliz! Agora eu via que elas nunca foram uma amostra do que estava por vir naquele caminho, mas apenas uma distração cruel, para que eu continuasse acreditando e seguindo a direção errada. Eu devia desistir! Deixar que vencessem sem tirar ainda mais de meu suor, sem lhes dar nem ao menos mais um segundo da satisfação de zombar do meu sofrimento!
                Mas não pude me convencer a parar de escalar, e assim, junto com os primeiros raios de sol da manhã, eu alcancei o topo do muro. Deitei meu corpo dolorido sobre a murada e deixei que o sol aquecesse os arranhões em meus braços, os hematomas em meus joelhos e as lágrimas em meus olhos. Esperei até que a luz fosse suficiente para que eu pudesse calcular as distancias dos dois lados daquele muro: para o lado de onde vim meu ponto de partida já tinha sido perdido de vista e na direção para onde eu imaginava estar o final da caminhada, nada se podia ver além de mais caminho a ser seguido. Ao que tudo indicava, eu poderia muito bem estar no meio do caminho.
Em cima do muro havia uma bolsa com alguns suprimentos, e havia uma escada talhada para me ajudar a descer o muro, caso eu resolvesse continuar na direção original, enquanto para voltar ao meu ponto de partida eu teria que escalar novamente até o chão.
Eu não demorei muito para tomar minha decisão: assim que vi a quantidade de caminho que eu já havia percorrido, fui tomado de uma repentina energia e confiança em mim mesmo! Afinal, se eu havia conseguido passar por tudo aquilo, seria plenamente capaz de alcançar o destino final, que era minha intenção desde o início. Não faria o menor sentido gastar tanta energia apenas para voltar ao lugar de onde eu quis sair em primeiro lugar!
Desci a escada (que claramente estava ali para me indicar a direção certa) e caminhei com minhas esperanças renovadas.

Hoje o dia está bonito e eu quase posso ouvir o cantar dos pássaros pintados nas paredes ao meu redor. Acho que meu destino prometido está finalmente depois da curva que se aproxima...

terça-feira, 14 de julho de 2015

Awareness

  -   Ei, acorda! O que que você tá fazendo?
  -     Shhh.... fica quieta que eu tô ocupado.
  -     Você sabe que nada disso é real né?
  -     Cala a boca, que eu tô tentando me concentrar.
  -     Pára de besteira, acorda logo! Se você quiser eu posso ajudar.
  -     Do que que você tá falando agora? Você nunca faz nenhum sentido.
  -     E você tá fugindo... de novo. Eu já falei que isso é perigoso.
  -     Eu tô bem!
  -    Então prova.
  -     Provar o que?
  -     Prova que isso é real. Aposto que não consegue.
  -     Eu já disse que tô ocupado.
  -     Ocupado fugindo...
  -     Huh... tá bom eu provo. E depois disso você me deixa em paz.
  -     Começa, então...
  -     Deixa eu ver... o que você quer que eu faça?
  -     Abre aquela porta.
  -     Eu tô de pijama! Aqui, vou comer esse chocolate.
  -     Esse chocolate não está aí.
  -     Você me preocupa quando começa com essas pirações, Amor.
  -     Sou eu que tô procupada com você. Vai lá. Abre a porta pra você ver.
  -     Não vou abrir a porta. Tá cheio de gente lá fora. Aqui vou ligar a música. Tá ouvindo?
  -     Ah, eu tô ouvindo sim. Mas não a música. Tá todo mundo preocupado. Vem pra cá logo.
  -     Pra cá aonde? Eu tô bem aqui do seu lado! Vem aqui, vou te abraçar. Tá se sentindo melhor?
  -     Não...
  -     Ah, vai! Não começa a chorar. Tá tudo bem.
  -     Por favor, me segue. Eu não sei quanto tempo a gente tem?
  -     Agora quem está falando em fugir?
  -     Não é fugir. É voltar. Por que você teve que fazer isso de novo?
  -     Eu não fiz nada demais. E se você vai ficar julgando todas as minhas atitudes, é melhor ir embora.
  -     Não vou ficar aqui com você. Quanto tempo levar! O que você tá fazendo?
  -     Eu tô escrevendo um texto novo, que ler?
  -     Adoraria... mas não tem texto nenhum aí.
  -     Claro que tem. Eu vou ler pra você:


          
 Ei, acorda! O que que você tá fazendo?
           Shhh.... fica quieta que eu tô ocupado.
          Você sabe que nada disso é real né?
          Cala a boca, que eu tô tentando me concentrar.
         Pára de besteira, acorda logo! Se você quiser eu posso ajudar.
         Do que que você tá falando agora? Você nunca faz nenhum sentido.


  -     Você tá vendo? Agora você percebeu né?
  -    Percebi o que? Você tá me interrompendo. Eu imagino quanto eu já não poderia ter escrito até agora se não fossem tantas interrupções!
  -     Me desculpe, mas eu não vejo o sentido! Enquanto você não voltar, tudo isso é uma perda de tempo.
  -     O meu trabalho é uma perda de tempo? Meus sentimentos? Nós?
  -     Você tá perdido dentro de si mesmo.
  -    Você que tem essa mania de problematizar o que é simples. Fica aqui comigo enquanto eu escrevo. Vai ficar tudo bem.
  -     E quando o texto acabar?
  -    Não se preocupa. Eu tenho ideias suficientes pra escrever por um bom tempo.
  -     Isso não tá certo...
  -     Por que não? Você não gosta da minha companhia?
  -     É o que eu mais gosto, mas...
  -     Sem mais. Senta aqui do meu lado, a gente vai escrevendo juntos.
  -     Mas aí você vai reclamar que eu tô te interrompendo.
  -     Esse tipo de interrupção é bom. Faz parte do processo.
  -     Tá bom, vamos ver no que dá.
  -     Ei! Tira essa ruguinha de preocupação do rosto. Confia em mim.
  -    Tá legal. Vamos lá.
  -     Assim está bem melhor.
  -     E como vai se chamar esse texto?
  -     Ego Looping.


terça-feira, 13 de agosto de 2013

Elipse


Lembro nitidamente do meu tom desafiador e das últimas palavras que lhes disse quando eles finalmente me capturaram e trouxeram para o Labirinto:
- Eu nunca esquecerei.
Eles apenas se entreolharam e sorriram. Lembro-me de ter ouvido um deles comentar em tom debochado enquanto se afastava:
- Todo mundo esquece.

A sentença era simples: “Saia do Labirinto pela porta certa e sua punição termina”. 
Senti um certo orgulho de mim mesmo, porque ao invés de estar com medo, uma estranha excitação me motivava a ingressar naquilo que eu começava a encarar como uma aventura.

O Labirinto era totalmente diferente do que eu havia imaginado quando ouvia os contos quase sussurrados daqueles que clamavam ter escapado de lá. As paredes eram feitas de pessoas vivas e falantes, com as mais diversas aparências e nos mais variados estados de humor. Centenas delas! Eram livres para andar e se movimentar da forma que quisessem, de modo que os caminhos se modificavam o tempo todo.

E todas elas falavam comigo! Pelo menos umas vinte vezes por dia alguns daqueles tijolos humanos me dirigiam a palavra, sempre me chamando por nomes diferentes. Mesmo quando a mesma pessoa falava comigo por uma segunda vez, já me batizava com um nome ou apelido diferente. 
No princípio eu as ignorava. Depois comecei a tentar convencê-las a me ajudar, então passei a odiá-las e finalmente comecei a encontrar nelas e em nossas breves e fúteis conversas um remédio para minha crescente solidão.

Conforme eu havia sido informado, o Labirinto tinha suas armadilhas: portas que se abriam para salas escuras, onde eu ficava por tempo indefinido (e indefinível!) e sempre sofria algum tipo de intervenção.
Na primeira dessas portas trocaram minhas roupas. Já na segunda eu fiquei trancado pelo que imagino ter sido dois dias, apenas ouvindo centenas de músicas diferentes, dos mais diversos estilos e nacionalidades. Outra porta me encerrou numa estranha sala de cinema, onde, através da tela, pessoas falavam diretamente comigo por horas, contando detalhes de toda a sua vida (algumas conhecidas minhas, inclusive).
Essas armadilhas se repetiram incansavelmente durante minha passagem pelo Labirinto. Trocaram minhas roupas incontáveis vezes, encheram meus ouvidos com provavelmente todas as músicas do planeta (eu chamava essas salas de Cubos do Inferno) e me apresentaram com riqueza de detalhes a tantas pessoas que eu já começava a confundir quais eram as que eu conhecera pessoalmente.

Eu era encaminhado até a porta que dava para a sala de refeições com uma escassa frequência e lá me era oferecido um banquete no escuro, onde todos os alimentos estavam cortados em formatos parecidos e eu não podia discernir o que estava comendo até que provasse.

Algumas das pessoas que compunham as paredes do Labirinto pareciam realmente gostar de mim e me davam apelidos simpáticos, enquanto outras me xingavam quando eu passava por elas .
Esses pequenos “relacionamentos”, como era de se esperar, com o tempo evoluíram em intensidade. Alguns dos “tijolos amigáveis” passaram a tentar me seduzir e alguns foram até correspondidos. 
Enquanto isso, alguns de meus antipatizantes já me agrediam abertamente. 
Diante da ausência de instruções sobre como proceder com relação às paredes vivas, eu reagia de acordo com meu instinto ou estado de humor. Por várias vezes retribuí as agressões e parti pra briga, outros dias eu apenas ignorava.

Um certo dia, uma moça me deu um tapa nas costas logo após eu ter passado por ela. Eu virei e mandei ela ir se fuder. Ela caiu na gargalhada e a partir de então nos tornamos amigos. 
Não que ela jamais tenha me dito seu nome, ou tenha parado de me chamar por apelidos diferentes como todos os outros, mas eu sabia que havíamos ficado amigos porque ela passou a me trazer cerveja.

E foi ela quem veio me parabenizar quando eu cheguei ao final do Labirinto.

Durante todos os anos que vaguei por entre aquelas paredes de gente, eu abria a maioria das portas que encontrava, mesmo sabendo que poderiam conter armadilhas, porque existia uma pequena possibilidade de eu ter chegado ao final do Labirinto e aquela ser “a porta certa”.
Quando finalmente encontrei o tão esperado final tive vontade de socar minha própria cara! Aquele lugar era tão diferente de todos os outros que eu não sei como pude ter me confundido por tantos anos!

Restava apenas uma tarefa e a que descobri ser a mais cruel: “Sair pela porta certa.”

Eu me encontrava em uma espécie de clareira e à minha frente haviam mais de quinze portas diferentes. Todas elas com a foto de uma versão de mim mesmo enquanto estive ali dentro. Ao lado de cada porta havia um pequeno dossiê, contando uma versão diferente de mim:
“Alan Vieira, 28 anos, gosta de música clássica e morangos. Amigo de Daniele e Gustavo. Qualidade: criativo. Defeito: agressivo.”
“Diego Souza, 30 anos, gosta de rock e pizza. Amigo de Luciana e Carlos Henrique. Qualidade: inteligente. Defeito: preguiçoso.”
“Marcelo Gramado, 32 anos, gosta de samba e berinjela. Amigo de Oscar e Thiago. Qualidade: integridade. Defeito: pessimismo.”

A medida que eu ia passando em frente à porta e lendo esses perfis, uma inquietação desesperada se abateu sobre mim. Ao final da ultima leitura, eu simplesmente não conseguia decidir qual daquelas versões correspondia exatamente à pessoa que eu era quando cheguei àquele lugar. 
Foi apenas nesse momento que percebi que estava perdido.

Fiquei sentando, olhando perplexo para aquelas portas durante uns três dias. Quanto mais eu tentava lembrar de mim, mais eu senti que perdia ou inventava algum detalhe.

Minha amiga vinha me trazer cerveja a noite e me fazia companhia. Ela também não tinha certeza de qual das portas estava certa e não sabia como me ajudar.

Foi apenas no terceiro dia que ela, observando minha aflição, olhou em meus olhos e propôs:
- Sabe... você pode ficar... não é tão ruim ser um de nós.

Aquela pareceu a melhor proposta que havia ouvido na vida e naquele momento eu sabia o que tinha que fazer:
Levantei e lhe disse adeus. 
Segui com passos firmes em direção à porta certa. Não aquela que eu lembrava estar correta, mas a que me descrevia exatamente naquele momento.


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Após muitas noites de insonia resolvi  que seria uma perda de tempo passar o resto da vida me questionando se fiz a escolha certa e passei a viver, simplesmente, sem questionar esse recomeço.
Nem tudo deu certo, nem tudo deu errado e nos vinte anos que se passaram desde de que deixei o Labirinto cheguei à conclusão que a vida é só a vida mesmo. E é assim pra todo mundo. E tá tudo bem.

Mas hoje, quando deixei aquela menina com seu olhar desafiador e sua promessa de que sempre se lembraria, senti uma sensação ruim....


E pela primeira vez, em muito tempo, sinto vontade de abrir novas portas.