terça-feira, 10 de maio de 2011

Música e efeito

Encaixei o fone nos ouvidos e aumentei o volume pela segunda vez no dia. Imediatamente todas as minhas preocupações e culpas pareceram se extinguir ou tornar-se pequenas demais.

Aquela musica era meu único prazer real, a única coisa que me fazia sentir realmente viva. A medida que as notas musicais iam tocando meus tímpanos eu sentia suas ondas sonoras espalharem-se por cada célula, cada neuronio, cada órgão, mergulhando meu corpo num absoluto estado de leveza e prazer. Fechei os olhos e me permiti entregar compleamente, dissipando o último resquicio de culpa com um sorriso de indulgencia: "é só uma música inocente".

No fundo eu sabia, ja tinha percebido a muito tempo, que aquela música era mais perigosa do que aparentava ser...

A primeira vez que a ouvi foi numa festa de fim de ano. A casa estava lotada, um som ambiente preenchia o lugar num volume moderado, algumas pessoas dançavam, outras conversavam à meia voz. Estávamos todos esperando pelos fogos da meia noite.
Não sei dizer exatamente como aconteceu, mas lembro apenas que num certo momento da noite um estranho DJ chegou ao local. Ele usava suéter, calça e chapéu pretos, luvas num vermelho bem escuro e - o mais estranho de tudo - uma mascara de tecido fino, na mesma cor das luvas, sem nenhuma abertura para olhos, nariz, nada!
O Dj caminhou até o palco sob os olhares curiosos dos convidados e, sem dizer uma palavra, retiriu do bolso um pequeno cd com a etiqueta "Música 8". Nomento em que a música começou a tocar a festa pareceu ganhar nova vida: as cores ficaram mais vibrantes, as pessoas mais alegres e até mesmo a força da gravidade parecia mais suave. Assistir aos fogos de artíficio, à meia noite, tendo com trilha sonora aquela música, foi uma das experiências mais incríveis que eu já vivera até então.
Depois disso eu nunca mais consegui ir a outra festa em que aquela música não tocasse pelo menos umas tres vezes na noite. Os finais de semana eram aguardados com avidez e celebrados com euforia. Cada vez que ouvia a "Música 8" era como se eu estivesse reencontrando uma velha amiga, ou voltando a um refúgio pacífico que eu não visitava há muito tempo.
Aos poucos passei a não aguentar mais a espera pelas festas de final de semana. A vida com a Música 8 era tão leve e bela que os problemas do dia a dia pareciam mil vezes mais pesados e insuportáveis quando eu retornava aos dias "normais".

Foi então que eu procurei o DJ daquela primeira festa, o único que tinha o estranho aparelho onde a música conseguia ser reproduzida. Parecendo a versão tamanho família de um Ipod normal, a geringonça pesava cerca de dez quilos e tinha trinta centimetros de comprimento. Pra funcionar precisava estar conectada à internet e cada vez que eu quisesse ouvir a música, uma "pequena taxa de utilização" era automaticamente debitada da minha conta. A saída de som podia ser ligada tanto à caixas amplificadoras quanto à fones de ouvido, mas carregar aquele trambolho na bolsa, como se fosse um MP3 player estava fora de cogitação pra mim! Pelo menos à principio...

Com o "Player 8" em casa, foi apenas uma questão de tempo até que eu perdesse o controle sobre a música. Quando dei por mim já estava ouvindo a Música 8 quase que diariamente e nos dias que não a ouvia ficava de mau humor ou deprimida. Uma boa parte do salario do meu mes era reservada para a taxa de utilização da Música 8, pois na minha opinião o prazer que ela me causava era muito maior do que o de comprar qualquer outra coisa. Alias, programas como cinema, teatro, sair com os amigos, etc. aos poucos pararam de me interessar. Eu preferia passar meus dias de folga em casa, mergulhada no prazer sensorial daquela melodia.

Eu nunca fui um pessoa burra e sabia exatamente o que estava acontecendo comigo. Sabia que a musica estava tentando me dominar e desde o principio eu já desconfiava que um produto vendido por um ser tão estranho quanto aquele DJ mascarado não poderia mesmo ter boas intenções. Mas mesmo assim eu continuei ouvindo cada vez mais aquela versão moderna do "canto da sereia", porque a sensação era tão boa que valia a pena!
Não vou aqui me estender pela lista de inconveniencias que a Música 8 me causou, porque para cada uma dessas inconveniencias ela me proporcionava horas de prazer que recompensavam à altura; mas lembro perfeitamente do motivo pelo qual senti pela primeira vez vontade de abandonà-la: saudades da vida. Saudades de prazeres mais reais, provocados não apenas pelas reações organicas que a musica me causava, mas pelas proprias experiencias em si. Saudades das alegrias espontaneas.
O único problema é que as alegrias espontaneas são muito incertas e a Música 8 era garantia de felicidade imediata. Eu amava a Música 8 e não fazia nenhum sentido me livrar dela. A vida iria continuar acontecendo e todos os dias eu me convencia de que era besteira me sentir culpada por ouvir uma simples música de vez em quando. Eu permaneceria relação de dependencia, amor e medo com a Musica 8 por muito, muito tempo...

Encaixei o fone nos ouvidos e aumentei o volume, pela segunda vez no dia. Imediatamente todas as minhas preocupações e culpas pareceram se extinguir ou tornar-se pequenas demais.

E então, envolvida por aquela sensação negligente de paz, eu sonhei: Uma figura parecida com o DJ da Musica 8 vinha em minha direção, mas suas roupas eram completamente brancas. Ele se aproximou de mim e, sem nenhuma palavra, removeu os fones que estavam em meus ouvidos, jogando-os para tão longe que se perderam de vista. Eu então removi com cuidado a másacara branca que cobria seu rosto e não senti nenhuma surpresa ao ver que aquela era eu mesma.