sexta-feira, 20 de abril de 2012

Quase o Alívio

Por um momento quase conseguiu abrir a porta, usando toda a sua força, mas estava tão emperrada que a maçaneta quebrou na sua mão. Acabou tendo que sair pela janela, e, apesar de morar no terceiro andar, quase conseguiu escalar as varandas abaixo sem nenhum arranhão, mas quando alcançou a sobreloja um dos tijolos se soltou debaixo de seus pés e ele caiu de uma altura de 4 metros.

Ficou estirado na calçada, sem ousar se mexer, pensando que se não fosse por causa dessa queda teria chegado na entrevista à tempo e poderia ter conseguido o emprego dos seus sonhos.

Ouviu pessoas passando a seu redor. A dor e a frustração o impediam de abrir os olhos. Alguém parou ao seu lado e começou a apalpar seu corpo. Ele achou que pudesse ser algum médico que, por sorte, estivesse passando no local, e quase se sentiu aliviado, mas poucos momentos depois o "exame" terminou e ele sentiu o bolso onde estivera sua carteira ficar mais vazio.

Alguém ligou para a polícia, alguém ligou para os bombeiros, alguém ligou para a amabulancia. Quando perguntado se tinha plano de saúde, ele quase respondeu que sim, mas então se lembrou de que sua carteira com todos os documentos acabara de ser roubada.

Foi levado para o pronto-socorro público e por várias vezes quase foi atendido, mas sempre tinha "um paciente mais grave" na sua frente. Esperou, esperou e esperou; e depois de quatro horas ele quase conseguiu dormir, mas uma fisgada intensa na sua perna o despertou: alguém havia esbarrado na sua maca.

No início da noite foi finalmente atendido, dessa vez por um médico que verdade. Foi informado que quase havia morrido: sua queda teria sido fatal se o golpe que recebera na cabeça tivesse sido alguns poucos centímetros mais abaixo. Mas ele tivera sorte. Sofrera apenas uma leve concussão e uma perna quebrada.

Dentro de duas semanas já poderia estar de volta ao seu emprego, telemarketing.

segunda-feira, 19 de março de 2012

A Partida

- Vou te perguntar mais uma vez: Por que você fez isso?
- Porque eu tinha medo.
- ... medo de que?
- De fazer o que fiz.
- Você tem consciencia de que essa sua resposta não faz o menor sentido? Eu preciso de um motivo de verdade, senão não posso te ajudar.
- Mas esse é o motivo verdadeiro! O Medo!... o medo e o cansaço.
- Cansaço? Do que você estava cansado?
- De ter medo.
- Mas o que você temia tanto??
- Eu tinha muito medo de fazer o que fiz.
- Essa conversa está girando em círculos. Quer saber? Eu desisto! Se você não quer me explicar fique sozinho com seus segredos.
- Não! Não desiste de mim! Por favor!
- ... O que eu vou fazer com você? Eu já não quero mais ficar no meio dessa confusão!
- Isso não é verdade. Você não quer ir embora.
- Como é que você pode saber o que eu quero ou não quero?
- Eu sei. Porque você está aqui. E está chorando.
- Eu sou uma boba idiota que chora por qualquer coisa.
- Não. Você chora por aquilo que ama. E pelo que não quer perder.
- Você não está em nenhuma condição de analizar meus sentimentos ou a minha personalidade. Já esqueceu porque estamos aqui hoje? Porque você surtou! Você está louco e eu não consigo te ajudar.
- Não estou louco. Só estou livre.
- Livre do que?
- Do medo.
- Do medo que você sentia de fazer o que fez?
- Isso.
- Ok, vamos supor que eu aceite essa sua explicação, embora não seja capaz de compreendê-la. Você se libertou do seu medo. E agora? O que pretende fazer?
- Agora sou seu.
- Ser meu não é um objetivo de vida.
- É meu único desejo no momento.
- Isso não é hora para galanteios ou elogios. Estou falando sério. Vou precisar de um motivo pra te trazer comigo.
- Isso eu não posso te dar. Os motivos são intransferíveis. Eu sei que tenho os meus, mas você tem que ter os seus próprios.
- Eu estou tentando... tentando te entender.
- Não me entenda, só me aceite.
- Isso não é o suficiente.
- Pra mim é.
- Mas pra mim não. Eu vou embora.
- ...
- Você não vai me pedir pra ficar?
- Não.
- Então vem comigo.
- Só se for pra ficar.

Saíram do pequeno bote de mãos dadas. Atrás deles, do outro lado do rio, as luzes das sirenes coloriam de vermelho a coluna de fumaça que se erguia quase até tocar o céu.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Fragmento nº 3

Minhas mãos tremem tanto que eu mal consigo limpar o sangue que cobre os dedos dele. Mergulho mais uma vez sua camisa debaixo da água corrente, enquanto tento ignorar o sentimento de culpa que me sufoca. Eu não posso deixar que ele seja visto dessa forma, não quando foi tudo culpa minha!

O beco está escuro e o barulho da água escoando pelo cano que acabamos de quebrar é o único som que se faz ouvir (além de um tambor surdo martelando em meus ouvidos, mas sei que esse é apenas o meu próprio coração batendo desesperadamente). Meus olhos estão embaçados enquanto observo a água tentar sem sucesso lavar o sangue da camisa em minhas mãos. Sinto um toque suave em meu rosto e percebo que ele está limpando duas lágrimas que escaparam por meus olhos.

Eu não deveria estar chorando na frente dele e isso faz com que eu sinta uma súbta onda de irritação:

- Não me toque com essas mãos sujas de sangue! – Eu o repreendo, sentindo uma pontada de culpa por falar com ele dessa forma.

Ele não parece se ofender:

- Você se preocupa demais.

- Eu não me preocupo! Apenas reconheço que todos os atos possuem consequencias.

- Exatamente! E o que aconteceu essa noite foi apenas uma dessas consequencias. Você não deveria se culpar por isso.

- Eu não me culpo! – Respondo irritada, sabendo que é inútil negar. Ele sempre consegue saber exatamente o que estou pensando.

- Vamos embora. – Ele toma a camisa enxarcada de minhas mãos e a joga por cima de um ombro – Nem que estivesse correndo cloro puro por esse cano você conseguiria limpar essa camisa.

Fico observando por um momento, enquanto gotas avermelhadas escorrem do tecido sobre seu torso, como se fossem as lágrimas... ou pequenos córregos de ira.

- Eu não vou com você. – Respondo finalmente, ainda sem conseguir desviar os olhos das gotas ensanguentadas. – Esse o ponto final dessa estória. Não podemos nos encontrar outra vez, nunca mais.

- Essa escolha sempre foi sua.

Ele vira de costas e começa a se afastar. Fico observando sua silhueta diminuir ao longo de beco escuro enquanto uma onda de pavor cresce em meu peito. Tento me convencer de que estou apenas com medo de ficar sozinha neste lugar sinistro, ou de que é normal sentir-me dessa forma depois da cena que eu acabara de presenciar. Afinal minhas próprias mãos ainda estão manchadas e até meu rosto agora contém traços de sangue onde as lágrimas caíram.

Mas eu sei que a aflição que sinto é na verdade o medo de minhas próprias palavras, medo de nunca mais encontrá-lo de novo. Sinto uma vontade louca de gritar e pedir para que ele me espere, mas ao invés disso, apenas mergulho minhas mãos na água e tento limpar o sangue em meu rosto.

A água gelada me faz recordar os acontecimentos com uma nitidez esntonteante: a noite sem lua ou estrelas, todos os postes da rua apagados... eu batendo na porta dele e ele me observando pela janela, tentando decidir se deveria me deixar entrar outra vez. O ruído de uma risada maldosa partindo das sombras atras de mim... todo aquele sangue (mas eu estava apenas me defendendo)... tudo aconteceu tão rápido! Eu nunca imaginei que seria mesmo capaz de ferir alguém daquela forma, mas meu corpo respondia apenas aos impulsos de ira e frustração que aquela tentativa de agressão havia despertado! E então de repente eu estava de pé, tremula, observando as cinco chaves de meu chaveiro profundamente mergulhadas numa ruína vermelha e borbulhante que havia emitido uma risada há tão poucos instantes atrás...

Afasto-me do cano quebrado, percebendo que agora estou completamente ensopada. Meus pés dançam em poças dentro do tenis e minha roupa se agarra ao meu corpo como uma segunda pele gelada e inflexível. Olho em volta meio desorientada, e por alguns segundos não faço idéia nem ao menos de em que cidade estou.

Então o vejo parado, um pequena silhueta escura e imóvel no final do beco. Sinto alívio arrebatador encher meu peito e caminho em sua direção. Sem pressa, pois sei que ele está me esperando.