quinta-feira, 28 de julho de 2011

Por ela

Enterrou os pés nas areia tentando, pelo menos naquela manhã, não pensar em nenhuma das coisas que precisava. A voz de sua melhor amiga ainda ecoava com suas últimas palavras: “Ser feliz é um verbo intransitivo“.

As lembranças das últimas quarenta e oito horas começaram a voltar como um carrossel girando numa velocidade vertiginosa e, antes que pudesse evitar, viu-se mergulhada naquele caleidoscópio de imagens, totalmente alheia ao mundo real a seu redor:

Estava em casa, em sua poltrona preferida, assintindo alguma coisa que não tinha a menor importância na televisão, quando Julia entrara correndo pela porta da sala, que nunca ficava trancada:
- Se arruma logo e vamos!!
Ela nem ao menos se preocupara em responder. Ja estava acostumada com as tentativas da amiga, sempre sugerindo algum programa “divertido”, algum pretexto para tirà-la de casa. Da mesma forma que Julia jà devia saber que a resposta a esses convites era sempre a mesma: Não!
- Alexandra estou falando com você! Você tem exatamente 20 minutos para se arrumar, confortavel, mas bonita. E leve um casaco leve porque vamos ficar fora até de noite.

Irritada com a insistencia de Julia, ela havia se voltado para dar um fora na amiga, mas pra sua surpresa, se viu apenas proferindo as palavras:
- Já vou.
Enquanto se arrumava, não conseguia entender o que estava fazendo. Ela quase nunca saía de casa, a menos que fosse por algum motivo muito importante. Não via o menor sentido em se arrumar, passear, andar a toa. Aliàs, não via muito sentido em quase nada, principalmente em viver.
Levou apenas dezoito minutos pra se olhar no espelho e sentir-se mais bonita do que jamais estivera na vida. Não que se achasse feia, mas normalmente tinha o hàbito de sempre achar defeitos em si mesma na hora de sair de casa.
Enquanto saíam de casa (Julia estava praticamente arrastando-a pela mão) ela lembrou-se de perguntar:
- Afinal de contas, pra onde é que estamos indo?
- Pra todos os lugares que eu sempre quis te levar.
Mais uma vez, ao invés de protestar imediatamente, ela apenas ficou curiosa:
- Nossa! Qual a ocasião? Por acaso é seu aniversário?
A amiga voltou-se pra ela com um sorriso radiante no rosto:
- Aniversário não é, mas tive três desejos concedidos essa manhã.
- Ahan... - ela comentara, cética - e quais foram esses desejos?
- Vem comigo que você vai saber.

A primeira parada foi na estação das barcas. Julia ja tinha comprado dois tickets para a barca de Paquetá e em dez minutos as duas ja estavam no segundo andar da embarcaçao, na parte aberta da lateral direita. Julia estava enconstada na murada, deixando que o vento embaralhasse seus cabelos de todas as formas que lhe aprouvesse. Ela sorria para Alexandra, que buscava abrigo do vento, sentada no branco mais próximo à porta.
- Vem pra cá ver as ondas! O dia está lindo hoje!

Alexandra pensou em responder que não queria seu cabelo ficasse parecido com um espanador, mas ao invés disso apenas se levantou e ficou ao lado da amiga.
- Você vai adorar Paquetá. A ilha é muito fofa, tranquila, e ótima para passeios em um dia ensolarado como esse. Mas a minha parte preferida mesmo é o trajeto. Essa hora e meia de barca, com vento fresco e balanço suave das ondas consegue acalmar qualquer preocupação. Me traz uma sensação de “paz dançante”!

Alexandra não discordou. Apenas concentrou-se em tentar aproveitar a tal paz dançarina, já que não tinha mesmo como escapar dali.

E o dia havia sido surpreendentemente agradàvel! As duas haviam caminhado por um parque natural, depois alugaram bicicletas e conseguiram conhecer toda a ilha em apenas uma tarde. Quando começou a anoitecer, sentaram-se pra jantar num restaurante próximo ao mar, que servia um peixe fresco delicioso!

Voltaram na última barca, às oito e meia da noite.

Durante a navegação de volta, Julia parecera cansada. Estava de pé, na proa da barca e contemplava as luzes dos navios na na Baía de Guanabara com um olhar distante e indecifrável. Após três tentativas de puxar assunto que foram totalmente ignoradas, Alexandra afastara-se um pouco da amiga, que obviamente parecia estar querendo privacidade.

A vista de dentro da baía de Guanabara à noite era simplesmente deslumbrante. O negrume da àgua refletia placidamente as luzes dos navios ancorados ao redor. A luz da lua e das estrelas parecia querer competir em beleza, numa disputa entre o natural e o artificial. A brisa morna não fazia barulho suficiente para abafar o ruído das ondas sendo cortadas pelo casco da embarcação.
Alexandra estava quase que hipnotizada, pensando no por quê nunca havia feito esse passeio antes, quando uma voz masculina a trouxera de volta para o mundo real:
- Eu só me pergunto porque é que nunca havia vindo à Paquetà antes!
Alexandra olhou para o rapaz ligeiramente assustada, por ouvir seus próprio pensamentos proferidos por uma voz masculina:
- Eu estava pensando exatamente a mesma coisa!
O rapaz soltou um sorriso simpàtico:
- Sua primeira vez também?
- Sim. Vim obrigada pela minha amiga. - Ela apontou para Julia.
O rapaz fez uma careta:
- Ela não parece muito afim de companhia no momento.
- A Julia sempre fica meio estranha perto do mar. E você? Veio sozinho?
- Não. Aniversário de um amigo.

Os dois começaram a conversar animadamente e quando perceberam a barca já estava ancorada na Praça XV e todos haviam saído. Todos menos Julia, que estava sentada em um banco, encolhida. Os dois correram em seu socorro:
- Julia, o que você tem? Tá passando mal?
- Não... ainda não! - Ela respondera, mas não parecia estar falando com a amiga.
- Vem, vamos levar ela num hospital.
- Não! - Ela agora estava falando com os dois - Estou ótima! Alexandra, ainda tem mais um lugar que eu quero te levar hoje a noite.

A próxima parada havia sido num barzinho com uma agradàvel música ambiente, na Lapa. Rodrigo havia resolvido acompanhar as duas meninas, ja que não conseguira convencê-las a ir ao hospital.
Julia participou da conversa dos dois por um tempo, bebeu duas caipirinhas e depois levantou-se da mesa pra ir dançar. Não, os dois não precisavam acompanhà-la, ela sabia que Alexandra era muito tímida pra dançar em público.

Por volta das quatro e meia da manhã ela voltou à mesa. Parecia sóbria, mas estava assustadoramente pálida!
- Acho que está na hora de eu ir pro hospital... - conseguiu dizer, antes de deixar-se cair numa cadeira.

A caminho para o hospital ela voltara a consciencia duas vezes. Alexandra estava a seu lado, enquanto Rodrigo ia apressando o motorista no banco da frente. Na primeira vez ela havia ficado consciente por quase cinco minutos e havia dito coisas que faziam pouco sentido. Dissera que seus três desejos haviam sido que Alexandra não pudesse lhe dizer “não” por um dia inteiro, que um novo amigo viesse compensar sua perda e que ela pudesse levar consigo uma parte da amiga.
Na segunda vez, mal havia abertos os olhos. Apenas dissera: “Ser feliz é um verbo intransitivo”.

Alexandra não vira mais a amiga. As horas do dia seguinte haviam escapado por entre seus dedos, num tubilhão de telefonemas, correria até a casa dos pais da amiga, perseguição de doutores pelo hospital em busca de alguma informação sobre o estado de Julia.
Apenas há duas horas atrás recebera a única notícia que não queria ouvir.

Sentada de frente para o mar Alexandra pensava “passivamente”, apenas permitindo que as ideias e emoções passeassem por seu corpo e consciencia. Lamentava terrivelmente a perda da amiga mas percebeu para sua surpresa que não se sentia infeliz.
Foi então que os delírios da amiga na madrugada anterior começaram a fazer algum sentido... Julia havia dito que levaria consigo uma parte da amiga e agora Alexandra tinha certeza de que parte fora essa: sua tristeza.

Ligeiramente desnorteada, sem saber se aquilo tudo era possivel mesmo, ela olhou para o lado e viu que Rodrigo se aproximava pela areia, trazendo uma garrafa de àgua. O brilho do sol nascendo às suas costas realçava as sombras de preocupação em seu rosto e Alexandra, sem ser capaz de chorar, sorriu.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Tela Negra

Ele já está me observando há pelos menos quarenta minutos. Sentado sozinho numa mesa no canto mais escuro do bar, ele nem sequer tocou no copo de whisky à sua frente. Me encara como se não houvesse mais nada ou ninguém a sua volta, como se eu fosse a única razão pra ele estar ali.

Esse comportamento suspeito estranhamente não me assusta. De todas as coisas que eu não consigo lembrar, sinto que ele é a mais importante. E ele parece saber disso também. Me olha como se nunca fosse perdoar o fato de eu ter esquecido quem ele é.

Todo mundo tem sido muito paciente comigo. Eles tentam me deixar à vontade e seus olhares piedosos parecem reafirmar a cada segundo que nada disso é culpa minha: o acidente, a perda da memória, tantas pessoas feridas e magoadas. Para eles eu sou a única vítima, e talvez eu seja mesmo. Mas esse estranho no fundo do bar me acusa com seus olhos, parece jogar sobre mim o peso de todas as infelicidades e injustiças dos últimos meses. E esse peso cai sobre os meus ombros como uma onda de alívio!

Meus amigos já pediram a conta e estão se levantando pra ir embora. Eu resolvo ficar. Nenhum deles protesta, em parte porque se acostumaram a nunca me contrariar, como se eu fosse uma frágil taça de cristal pronta para me estilhaçar a qualquer tom de voz mais alterado. Mas sei que eles também mal podem esperar pra se ver livres de minha companhia. Esse relacionamento de palavras não ditas e emoções reprimidas se tornou um fardo tão insuportável pra mim quanto pra eles.

Espero até que eles saiam, pego minha taça de vinho que ainda está pela metade e me dirijo com passos decididos até a mesa daquele estranho. Sento-me em silêncio na cadeira em frente a ele e tomo um gole de minha bebida.

Ele continua me encarando em silêncio por um tempo. Um silêncio pesado e cheio de cheio de eletricidade. Acho que vi uma pontada de raiva em seus olhos, mas talvez seja só minha imaginação. De qualquer forma é a primeira vez que me sinto realmente viva desde o acidente.

Estendo a mão para tomar outro gole do meu vinho, mas ele me interrompe. Sua mão pesada segura braço com um movimento brusco, derramando o resto do meu vinho na mesa. Ele não se importa com a bagunça. Nem eu.

- O que você está fazendo? – Ele pergunta. Sua voz me soa familiar, quente, feroz e dolorida.

- Não sei. – Respondo sinceramente.

- Devia ter ido embora com seus amigos. – Ele pronuncia essa última palavra com um rancor indisfarçável.

- Você me odeia.

- Sim! – ele confirma quase com um rugido de emoção.

Ficamos em silêncio. Não me sinto ameaçada ou intimidada. Talvez apenas um pouco triste.

Ele solta um longo suspiro e balança a cabeça lentamente:

- Não.

- Mas você não consegue me perdoar.

- Eu jamais teria esquecido você! Nunca! – Ele torna a me encarar. Seus olhos faíscam como um mar de acusações.

- Mas não é minha culpa...

- É SIM! – Ele grita, socando a mesa à nossa frente. As poucas pessoas ainda no bar se viram para nos olhar, sobressaltadas.

Eu me levanto e dou a volta na mesa, parando de pé ao lado dele. Seguro sua mão, que ainda está contraída com o soco e faço um discreto carinho em seu punho:

- Vem. Vamos sair daqui.

Ele se levanta, obediente. Sinto um calor quente de felicidade quando sua mão envolve a minha.

Caminhamos de mãos dadas em silencio. A noite sopra uma brisa gelada e a maioria dos postes não estão funcionando nessa parte pouco privilegiada da cidade. A rua está praticamente deserta; parece que todo mundo conseguiu encontrar um abrigo para o frio e escuridão dessa madrugada. Somos os únicos que não podemos nos abrigar, porque o inverno parece estar dentro de nós mesmos.

- Me fala sobre você – Peço, sem ter certeza de quero saber realmente.

- Não.

- Por que não?

- Você já sabe tudo a meu respeito. Eu não posso e nem quero passar por essa fase de apresentações outra vez.

- Então me fala sobre nós dois.

- Me fala você.

- Mas eu não sei! – Respondo, sentindo-me irritada e frustrada – Será que você não vê que estou tentando? Mas é inútil! Eu não lembro de absolutamente nada!

- Dane-se a merda desse passado então! –Ele pára de andar e me segura pelos ombros, me sacudindo com força – Foda-se a sua memória! Foda-se o que você lembra ou deixa de lembrar! Finge que nada nunca aconteceu! Você sempre foi boa nisso mesmo!

- Mas eu não quero fingir! Eu só estou tentando juntar os pedaços desse quebra-cabeça gigante que se tornou a minha vida.

- Pois não conte comigo pra isso! Não sou igual aos seus amiguinhos covardes! Eu me recuso a ser mais uma peça inanimada que você tenta encaixar na bagunça da sua própria cabeça. Eu tenho visto como eles se comportam perto de você: desesperados pra caber em qualquer situação que você os colocar. Eles renunciam a própria personalidade quando estão perto de você, só pra você não se sentir excluída, já que é a única que realmente não tem uma.

Antes que possa perceber o que estou fazendo sinto minha mão atingir o rosto dele, com força. Mal consigo respirar de tanta raiva. Ele fica surpreso com minha reação e olha pra mim, como se estivesse me vendo pela primeira vez:

- Então você ainda está aí dentro? – Ele pergunta em tom de provocação – Não é apenas a cabeça oca que vem fingindo ser nesses últimos meses?

- Cala essa boca!

- Senão o que? Você vai me bater de novo?

- Não! – Respondo confusa – Mas vou embora.

- E o que te faz pensar que eu me importo?

- Eu sei que você se importa!

- Sabe é? – Ele pergunta em tom desafiador – O que você acha que sabe sobre mim? Pensei que você não se lembrasse de nada.

- Eu não lembro, mas sei. Sei que você não consegue tirar os olhos de mim quando estou por perto. Sei que você está tão magoado pelo meu afastamento que isso te deixa enraivecido. Sei que o toque da minha mão consegue te acalmar...

Ele desvia o olhar. Parece estar lutando contra suas próprias emoções. Eu seguro uma de suas mãos entre as minhas e sinto seus músculos relaxarem. Uma suave onda de calor parece se alternar entre nós dois.

- Eu sei que você está frustrado porque pensa que perdemos tudo o que passou. Mas ainda temos...

Eu me aproximo e toco seus lábios levemente com os meus. Sinto meu coração disparar como se um tornado de chamas tomasse conta do meu corpo. Meus dedos ficam dormentes enquanto tudo à nossa volta parece mergulhar numa luminosidade púrpura.

- isso. – completo a frase, com um suspiro de satisfação.

Ele acaricia meu rosto com a ponta dos dedos, com um olhar de alegria e dúvida:

- Eu só me pergunto se o que nos resta é suficiente.

- É tudo o que precisamos. – Respondo, sentindo-me mais confiante a cada segundo. – Temos muito tempo pela frente para criarmos novas memórias.

Ele sorri e me abraça. O vento frio assobia em nossos ouvidos, arrastando folhas secas em pequenos redemoinhos pelo chão. A escuridão à nossa volta agora é quase total, mas eu mantenho os olhos abertos pra registrar cada pedaço dessa primeira memória que pretendo levar para o resto da vida.