terça-feira, 4 de outubro de 2016

Algodão

- Um brinde à essa vitória!
- Um brinde? Sério mesmo?
- Sério, ué! Qual o problema?
- Me parece um pouco... inapropriado. Dadas as circunstâncias...
- As circunstâncias? As únicas circunstâncias que importam aqui é que tudo está resolvido. Você está bem, eu estou bem... você está VIVA! Quer me dizer que isso tudo não merece um brinde?
- Talvez você tenha razão...
- Claro que tenho 

Ele respondeu e o som macio da rolha se abrindo fez refrão à sua certeza.

- Vinho? Tem mesmo que ser uma bebida tão... vermelha?
- Ei, o vermelho sempre foi sua cor preferida. Eu não vou deixar você perder mais iss...
- Tudo bem, tudo bem. Você está certo. Só me deixa lavar as mãos primeiro.
- Do que você está falando? Suas mãos não estão sujas.
- Tá brincando? Olha só pra elas!

Estendo minhas mãos ainda trêmulas pra que ele veja, enquanto eu mesma desvio o olhar. Ele toma minha mão direita e a leva até o seu próprio rosto, com gentileza. Eu só posso observar enquanto sua face, seus olhos, seus cabelos tornam-se rubros ao meu toque.
O ar está pesado e ainda ecoa os últimos momentos vividos neste lugar, mas agora, ao invés do pavor, é algodão que preenche cada milímetro ao nosso redor: uma matéria suave feita de alívio e perplexidade que pesa sobre meus ombros e dentro da minha alma como a mais macia das nuvens de primavera.
Estou hipnotizada pela quantidade de sensações que disputam minha atenção nesse novo silêncio, enquanto compartilho com um cúmplice involuntário as evidencias viscosas de minhas últimas ações. E ele está tão ansioso para fazer parte de tudo isso, para demonstrar que está ali, ao meu lado, mesmo nesse momento que ele não tem condições de compreender! Não completamente.
Sua lealdade inocente me traz aos lábios um sorriso exasperado e ele percebe.

- Você acha que eu sou um completo tolo, não é? Acha que eu não sei nad...
- Você não é tolo. Você é a companhia mais leal que eu já tive em muito tempo... talvez a mais leal de todas. Mas não. Você simplesmente nunca vai poder compreender completamente. E isso é bom. O fato de você estar aqui seria suficiente. O seu apoio mesmo sem a compreensão total é muito mais do que eu poderia pedir e mesmo assim você me ofereceu.

Eu sirvo o vinho em duas taças e entrego uma delas em sua mão.
Ele brinda comigo feliz, bebendo ao que ele considera uma grande primeira vitória num longo caminho de aventuras e conquistas.

Mas minha taça está cheia de um algodão adocicado que brinda apenas a fugacidade deste momento de esperança. Ainda que ela não seja minha.

1 comentários:

Peter parker disse...
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