As gotas daquela estranha chuva
caíam e eu não conseguia parar de contar. 943, 942, 941 e lá vinha outro. Será
que ninguém mais percebia? Fazia quatro dias e eu sabia que o tempo estava
acabando. Parte de mim queria ficar aliviada e até ansiosa para que tudo
simplesmente acabasse logo, mas a verdade é que as horas dos últimos quatro
dias eu passei num estado de pânico crescente. O que será que vai acontecer
quando cair a última gota?
Faltava pouco tempo agora para eu
descobrir.
Aproximei a taça mais uma vez e o
sabor do Syrah me trouxe de volta a lembrança do momento em que tudo começou (a
lembrança passava como um filme em minha memória, mas aquela outra parte do meu
cérebro não parava de calcular 901, 900. Outro. E agora só restavam 15 minutos).
Lembrei daquela noite. Já era próximo
das onze, eu havia subido nas pedras e observava as ondas do mar. No caminho,
um rapaz alcoolizado havia acabado de tropeçar e sua boca estava sangrado, mas
seus amigos estavam sorrindo e pareciam achar que a situação era mais cômica do
que grave, então continuei subindo e deixei pra trás suas risadas.
Lá em cima, assim como agora, eu também tinha uma
taça em minha mão, e também estava perdida em uma lembrança. Mas o vinho era um
Merlot e a lembrança era mais antiga. Eu havia subido ali para rememorar o
acidente de 4 anos atrás e não tinha muita certeza de que iria descer
novamente.
Os acontecimentos rodopiavam em
minha memória numa velocidade sufocante, e eu só enxergava os momentos em que
eu poderia ter feito algo diferente, algo que evitasse aquilo tudo. Quatro dias
antes eu poderia ter simplesmente desistido de ir, na véspera eu poderia ter sugerido
uma mudança de planos, 15 minutos antes... foram tantas oportunidades. Literalmente
qualquer coisa ação minha em qualquer momento dentro daqueles quatro dias podia
ter mudado tudo. Será possível que o universo era assim tão meticulosamente
calculado? Que cada decisão tomada era exatamente aquela uma em um milhão, que
somando-se às outras, nos conduziram pela mão àquele terrível destino?
O vinho tinha acabado e a espuma
das ondas era hipnótica. Me levantei e caminhei para a beirada... talvez eu
devesse me aproximar um pouco mais...
E foi nesse momento que ele se
aproximou. Usava um chapéu e um sobretudo, eu não pude ver ser rosto nem ao
menos precisar detalhes sobre sua aparência. Ele me entregou um papel que
continha apenas o número 345.600 e disse “espere por esse número”.
Antes que eu pudesse responder o
homem se virou e desceu o caminho de pedras com uma habilidade e velocidade
impressionantes! Fiquei observando enquanto ele descia. O estranho bilhete
estava em minha mão, a taça havia caído no mar com o susto. Eu ia voltar a contemplar
o mar, mas no momento em que o sujeito misterioso pisou na areia começou uma
chuva – essa chuva.
Peguei a garrafa vazia e
um pingo vermelho caiu em meu nariz. Não dei muita importância e comecei a
descer. Como a perda estava escorregadia eu precisava me concentrar e apelei
para uma técnica que sempre utilizo quando preciso de foco: contar os segundos.
Um, dois, três, quatro, cinco... fui descendo com cuidado. Dez. Uma gota vermelha
pinga em minha mão e eu atribuo à garrafa de vinho, tentando tomar mais cuidado
pra que ela não cause manchas maiores.
Eu consigo ver o grupo de amigos
do rapaz que se acidentou. Eles estão cantando felizes, como se nada tivesse
acontecido. O rapaz não está no meio deles. Quarenta e sete, quarenta e oito,
quarenta e nove, cinquenta. Dessa vez eu percebo: uma grande gota vermelha, bem
nítida se junta à cortina de gotas de água, caindo numa poça qualquer.
Curiosa, eu redobro a atenção à
minha contagem e agora tenho certeza, a cada dez segundos a gota vermelha volta
a cair. Eu paro de descer por tempo, para testar essa teoria e rio da minha
própria fantasia. Devo estar perdendo a cabeça. Continuo a descer, intrigada. A
cada dez segundos a graça inicial dessa descoberta se enfraquece mais um pouco,
cedendo lugar para uma estranha inquietação. Passo pelo rapaz alcoolizado e o
vejo tropeçar e cair – outra vez – ele se levanta com a boca ensanguentada, exatamente
como anteriormente e o grupo de amigos vem em sua direção rindo e fazendo
piada.
Eu apresso o passo e chego à
areia. Agora estou oficialmente assustada.
Não consigo parar de contar os
segundos e agora tenho a assustadora impressão de que estou presenciando, neste
caminho de volta, os mesmos acontecimentos que observei quando estava vindo. Uma
moça de saia vermelha cruza as pernas num banco. Um senhor muito idoso tenta
acender um cigarro, um cachorro encontra um pedaço de osso num saco de lixo.
Não é bem como se eu estivesse vendo um filme ao contrário, com pessoas andando de trás pra frente e ou acontecimentos se desfazendo, mas como se aquelas
cenas estivessem apenas se repetindo, do início, como se nunca tivessem
acontecido antes.
Chego em casa trêmula e em pânico
e demoro um pouco para reparar que o bilhete ainda está na minha mão. Eu tento
reconstituir os acontecimentos, reconhecer alguma característica especial do
homem misterioso, entender qual o significado daquele número. Minha cabeça dói,
eu continuo contando, agora involuntariamente, apenas porque não consigo parar. Uma parte de meu cérebro ativou alguma espécie de calculadora automática. 1230,
1231. Mas o que significam as gotas vermelhas? Por que os intervalos de dez
segundos?
Os segundos tornam a madrugada
insuportável. Deitada na cama, exausta e em pânico, eu só consigo amaldiçoar o
encontro com aquele estranho. Tenho certeza que de alguma forma ele é o culpado
do que está acontecendo. Se a menos eu pudesse voltar no tempo, nunca teria subido
aquelas pedras, nada disso estaria acont... e de repente eu simplesmente sei!
Levanto calmamente da cama, vou
até a sala, e pego uma calculadora, já sabendo qual será o resultado do cálculo:
trezentos e quarenta e cinco mil e seiscentos segundos. Quatro dias. Não é uma sequencia
infinita, é uma contagem regressiva. Os pingos vermelhos me sinalizam quando os
momentos estão sendo reiniciados, sinalizam minha janela de oportunidade para
voltar e interferir nas cenas ao meu redor.
Faço mais um cálculo apressado:
já se passaram 18.000 minutos. Isso significa que eu tenho mais 327.600 segundos, 32.760 janelas para mudar tudo que quiser nos últimos quatro dias! Automaticamente a contagem
automática do meu cérebro se atualiza: 327,599.
De volta ao presente, enquanto
saboreio mais um gole do Syrah, sinto um desconforto ao lembrar de como esses
últimos dias foram corridos, de como eu me senti invencível nas primeiras
mudanças e de como, no final, me sinto tão derrotada. Tudo que fiz, correndo
como louca contra o tempo, travando estratégias, magoando pessoas, evitando acidentes...
foi tudo tão... inútil. Nunca me senti tão vazia, tão sem importância, tão
irrelevante em toda a minha vida.
300, 299, 298.
Quatro dias não importam. Nada do
que acontece tem significado nenhum, mesmo quando nos esforçamos para significar
momentos e acontecimentos através de nossas ações. Qualquer importância é
ilusória, fruto de nossas próprias vontades e sensações.
Acabo me dar conta de que esses quatro
dias foram o período mais longo que passei sem pensar sobre o acidente e
lembrar dele agora me deixa constrangida. Imaginar que chorei tantas noites,
que senti como se toda a dor do mundo estivesse dentro de mim. E agora, não
consigo convocar sentimento algum para associar a ele. Apenas uma profunda indiferença.
É como se o universo inteiro
pudesse ser resumido numa única sílaba e eu sinto que que estou prestes a descobrir
qual é.
50, 49,48
Não há meticulosidade no universo.
Ninguém está nos guiando pela mão para futuro algum, seja ele bom o ruim. Tudo
é apenas o caos.
10, 9, 8
A última gota do vinho se acabou.
3,2,1
Blah.
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