terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Em tempo



As gotas daquela estranha chuva caíam e eu não conseguia parar de contar. 943, 942, 941 e lá vinha outro. Será que ninguém mais percebia? Fazia quatro dias e eu sabia que o tempo estava acabando. Parte de mim queria ficar aliviada e até ansiosa para que tudo simplesmente acabasse logo, mas a verdade é que as horas dos últimos quatro dias eu passei num estado de pânico crescente. O que será que vai acontecer quando cair a última gota?
Faltava pouco tempo agora para eu descobrir.
Aproximei a taça mais uma vez e o sabor do Syrah me trouxe de volta a lembrança do momento em que tudo começou (a lembrança passava como um filme em minha memória, mas aquela outra parte do meu cérebro não parava de calcular 901, 900. Outro. E agora só restavam 15 minutos).
Lembrei daquela noite. Já era próximo das onze, eu havia subido nas pedras e observava as ondas do mar. No caminho, um rapaz alcoolizado havia acabado de tropeçar e sua boca estava sangrado, mas seus amigos estavam sorrindo e pareciam achar que a situação era mais cômica do que grave, então continuei subindo e deixei pra trás suas risadas.
Lá em cima, assim como agora, eu também tinha uma taça em minha mão, e também estava perdida em uma lembrança. Mas o vinho era um Merlot e a lembrança era mais antiga. Eu havia subido ali para rememorar o acidente de 4 anos atrás e não tinha muita certeza de que iria descer novamente.
Os acontecimentos rodopiavam em minha memória numa velocidade sufocante, e eu só enxergava os momentos em que eu poderia ter feito algo diferente, algo que evitasse aquilo tudo. Quatro dias antes eu poderia ter simplesmente desistido de ir, na véspera eu poderia ter sugerido uma mudança de planos, 15 minutos antes... foram tantas oportunidades. Literalmente qualquer coisa ação minha em qualquer momento dentro daqueles quatro dias podia ter mudado tudo. Será possível que o universo era assim tão meticulosamente calculado? Que cada decisão tomada era exatamente aquela uma em um milhão, que somando-se às outras, nos conduziram pela mão àquele terrível destino?
O vinho tinha acabado e a espuma das ondas era hipnótica. Me levantei e caminhei para a beirada... talvez eu devesse me aproximar um pouco mais...
E foi nesse momento que ele se aproximou. Usava um chapéu e um sobretudo, eu não pude ver ser rosto nem ao menos precisar detalhes sobre sua aparência. Ele me entregou um papel que continha apenas o número 345.600 e disse “espere por esse número”.
Antes que eu pudesse responder o homem se virou e desceu o caminho de pedras com uma habilidade e velocidade impressionantes! Fiquei observando enquanto ele descia. O estranho bilhete estava em minha mão, a taça havia caído no mar com o susto. Eu ia voltar a contemplar o mar, mas no momento em que o sujeito misterioso pisou na areia começou uma chuva – essa chuva.
Peguei a garrafa vazia e um pingo vermelho caiu em meu nariz. Não dei muita importância e comecei a descer. Como a perda estava escorregadia eu precisava me concentrar e apelei para uma técnica que sempre utilizo quando preciso de foco: contar os segundos. Um, dois, três, quatro, cinco... fui descendo com cuidado. Dez. Uma gota vermelha pinga em minha mão e eu atribuo à garrafa de vinho, tentando tomar mais cuidado pra que ela não cause manchas maiores.
Eu consigo ver o grupo de amigos do rapaz que se acidentou. Eles estão cantando felizes, como se nada tivesse acontecido. O rapaz não está no meio deles. Quarenta e sete, quarenta e oito, quarenta e nove, cinquenta. Dessa vez eu percebo: uma grande gota vermelha, bem nítida se junta à cortina de gotas de água, caindo numa poça qualquer.
Curiosa, eu redobro a atenção à minha contagem e agora tenho certeza, a cada dez segundos a gota vermelha volta a cair. Eu paro de descer por tempo, para testar essa teoria e rio da minha própria fantasia. Devo estar perdendo a cabeça. Continuo a descer, intrigada. A cada dez segundos a graça inicial dessa descoberta se enfraquece mais um pouco, cedendo lugar para uma estranha inquietação. Passo pelo rapaz alcoolizado e o vejo tropeçar e cair – outra vez – ele se levanta com a boca ensanguentada, exatamente como anteriormente e o grupo de amigos vem em sua direção rindo e fazendo piada.
Eu apresso o passo e chego à areia. Agora estou oficialmente assustada.
Não consigo parar de contar os segundos e agora tenho a assustadora impressão de que estou presenciando, neste caminho de volta, os mesmos acontecimentos que observei quando estava vindo. Uma moça de saia vermelha cruza as pernas num banco. Um senhor muito idoso tenta acender um cigarro, um cachorro encontra um pedaço de osso num saco de lixo. Não é bem como se eu estivesse vendo um filme ao contrário, com pessoas andando de trás pra frente e ou acontecimentos se desfazendo, mas como se aquelas cenas estivessem apenas se repetindo, do início, como se nunca tivessem acontecido antes.
Chego em casa trêmula e em pânico e demoro um pouco para reparar que o bilhete ainda está na minha mão. Eu tento reconstituir os acontecimentos, reconhecer alguma característica especial do homem misterioso, entender qual o significado daquele número. Minha cabeça dói, eu continuo contando, agora involuntariamente, apenas porque não consigo parar. Uma parte de meu cérebro ativou alguma espécie de calculadora automática. 1230, 1231. Mas o que significam as gotas vermelhas? Por que os intervalos de dez segundos?
Os segundos tornam a madrugada insuportável. Deitada na cama, exausta e em pânico, eu só consigo amaldiçoar o encontro com aquele estranho. Tenho certeza que de alguma forma ele é o culpado do que está acontecendo. Se a menos eu pudesse voltar no tempo, nunca teria subido aquelas pedras, nada disso estaria acont... e de repente eu simplesmente sei!
Levanto calmamente da cama, vou até a sala, e pego uma calculadora, já sabendo qual será o resultado do cálculo: trezentos e quarenta e cinco mil e seiscentos segundos. Quatro dias. Não é uma sequencia infinita, é uma contagem regressiva. Os pingos vermelhos me sinalizam quando os momentos estão sendo reiniciados, sinalizam minha janela de oportunidade para voltar e interferir nas cenas ao meu redor.
Faço mais um cálculo apressado: já se passaram 18.000 minutos. Isso significa que eu tenho mais 327.600 segundos, 32.760 janelas para mudar tudo que quiser nos últimos quatro dias! Automaticamente a contagem automática do meu cérebro se atualiza: 327,599.
De volta ao presente, enquanto saboreio mais um gole do Syrah, sinto um desconforto ao lembrar de como esses últimos dias foram corridos, de como eu me senti invencível nas primeiras mudanças e de como, no final, me sinto tão derrotada. Tudo que fiz, correndo como louca contra o tempo, travando estratégias, magoando pessoas, evitando acidentes... foi tudo tão... inútil. Nunca me senti tão vazia, tão sem importância, tão irrelevante em toda a minha vida.
300, 299, 298.
Quatro dias não importam. Nada do que acontece tem significado nenhum, mesmo quando nos esforçamos para significar momentos e acontecimentos através de nossas ações. Qualquer importância é ilusória, fruto de nossas próprias vontades e sensações.
Acabo me dar conta de que esses quatro dias foram o período mais longo que passei sem pensar sobre o acidente e lembrar dele agora me deixa constrangida. Imaginar que chorei tantas noites, que senti como se toda a dor do mundo estivesse dentro de mim. E agora, não consigo convocar sentimento algum para associar a ele. Apenas uma profunda indiferença.
É como se o universo inteiro pudesse ser resumido numa única sílaba e eu sinto que que estou prestes a descobrir qual é.
50, 49,48
Não há meticulosidade no universo. Ninguém está nos guiando pela mão para futuro algum, seja ele bom o ruim. Tudo é apenas o caos.
10, 9, 8
A última gota do vinho se acabou.
3,2,1
Blah.


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