quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Sono Profundo

O relógio está marcando dez e quinze da manhã. Não acredito que me atrasei outra vez! É simplesmente inacreditável, mas em todos os anos que eu tive insônia, bebia e acordava de ressaca eu NUNCA me atrasei pra nada. Agora, desde que comecei a conseguir dormir as dez e meia todas as noites, não consigo mais chegar pontualmente em lugar nenhum!

Enquanto visto a primeira roupa que me vem à mão na bagunça do meu armário, olho outra vez para o relógio de prata ao lado da cabeceira de minha cama e lembro do senhor oriental desdentado e simpático que o vendeu para mim numa feirinha de antiguidades da Rua do Lavradio. Ele havia me jurado que era uma relíquia de família, e que fora fabricado há mais de duzentos anos atrás, na Tailândia, com uma técnica especial e que o ruído das engrenagens provocava sono.
Na hora não acreditei muito. Só comprei porque era bonito e estava barato. Mas tive a maior surpresa quando percebi que o relógio realmente me fazia dormir!

Não tenho tempo pra lembranças agora! Corro pra escovar os dentes enquanto tento expulsar a história que ele havia me contado e agora volta com todos os detalhes à minha memória, me atrasando mais ainda pro trabalho!

Qual era mesmo o nome dele? Não lembro! Ele nem tinha uma barraca como os outros feirantes! Estava sentado num barzinho na esquina da feira, com aquele belo relógio de prata na mão e eu nem tinha reparado nele quando entrei pra comprar uma cerveja.

Enxugo o rosto, pego minha bolsa caída no chão ao lado da cama e corro para o elevador, que demora pelo menos uns cinco minutos pra chegar. Saio correndo pela portaria do prédio e percebo que está chovendo torrencialmente. Que droga! Hoje não é mesmo o meu dia! Saio correndo debaixo de chuva.

Poucos metros atrás de mim alguém está chamando uma tal de “Irís”. Deve ter me confundido com alguém, mas eu não estou com tempo pra parar de baixo da chuva e corrigi-lo, por isso apresso mais o passo até o ponto de ônibus. Sento no pequeno banco de metal e começo a remexer a bolsa ensopada, a procura da carteira. Segundos depois, ouço a mesma voz masculina atrás de mim, um tom de voz ressentido:

- Você não vai nem falar comigo, Irís?
Levo um susto e me viro irritada:
- Não sou a Irís! – Depois percebo que o pobre coitado não tem culpa do meu mau humor e acrescento tentando ser mais simpática – desculpe, você deve estar me confundindo com alguém.
- Vai dizer agora que você tem uma irmã gêmea? – Ele responde irritado e um pouco confiante demais para o meu gosto!
- Irmã gêmea? Escuta aqui, cara, me deixa em paz, ta?
- Íris! – Ele senta do meu lado subitamente e pega a mão. – Você está sendo ridícula! Eu não sou nenhum idiota e nem você! Quer parar com essa palhaçada?
- Meu senhor – respiro fundo e sinto que cada palavra sai de minha boca com duas toneladas de desaforos subentendidos. – Eu não sei quem é Íris.

Ele olha pra mim com mais atenção. Uma ligeira desconfiança passa por seus olhos. Percebo que suas mãos quentes ainda estão envolvendo a minha, mas alguma coisa na intensidade com que ele me olha me impede de retirar a mão. Devem ter ser passado apenas uns três segundos que estou encarando este estranho, mas parece uma eternidade!

- Você é tão boba! – Ele sorri, sacudindo levemente a cabeça e se inclina claramente na intenção de me beijar.
Eu recuo e me levanto assustada.
- O que você pensa que está fazendo? – Percebo que minha voz está alterada, com um misto de irritação, susto e... algo mais que não consigo identificar.
- Você jura por Deus que não ta me reconhecendo? – Em seus olhos vejo a mais pura expressão de espanto.
- Sou eu, Edgard!
- Moço, você ta me confundindo. Meu nome é Alice.

Percebo que meu ônibus passa, mas não faço sinal. Agora estou realmente curiosa pra saber o que está acontecendo. O homem na minha frente parece mortalmente divido entre desconfiança e desespero. Resolvo tentar ajudá-lo.

- Você está se sentindo bem? Quer uma água? – ele recusa com a cabeça e eu sorrio pra tentar quebrar a tensão – Nossa! Será que essa Íris é tão parecida assim comigo? Quer dizer, você já ta aqui me olhando a uns cinco minutos e ainda não acredita que eu não sou ela!
- Você não está entendendo! Você é ela! Tenho certeza! – então ele parece ter uma idéia e se vira pra mim outra vez - Você tem um sinal de nascença na planta do pé. Uma pequena cicatriz no joelho esquerdo e... hum... – ele desvia os olhos, enrubescendo – uma tatuagem...

Sinto um súbito frio na boca do estômago e olho pra ele sem acreditar. Sinto medo, minhas pernas ficam ligeiramente trêmulas e eu me sento novamente no banco. Passam-se alguns segundos até que eu formule a pergunta para a qual tenho certeza de que não quero saber a resposta:
- Como você sabe disso tudo sobre mim?
Edgard olha pra mim constrangido. Acho que é muito cavalheiro pra me dar a resposta óbvia. Ele toca de leve no meu ombro:
- Posso te pagar um café?

Ainda me sentindo um pouco zonza, atravesso a rua com aquele desconhecido. Seu braço está em volta do meu ombro de uma forma protetora e eu sinto a chuva cair sobre mim como se não estivesse molhando o meu rosto, mas o rosto de alguma outra pessoa.

Sentamos numa mesa da parte externa da cafeteria que está coberta por um toldo verde. Ele pede dois cafés sem açúcar. Parece que está me esperando falar alguma coisa, mas eu continuo muda, então ele decide começar:

- Eu ainda não entendo como isso pode estar acontecendo, como você pode ter esquecido de tudo!
Me sinto muito cansada pra explicar a ele que não esqueci de nada, que eu sou eu mesma e me chamo Alice desde que nasci. Ele continua:
– Você sofreu algum acidente recentemente? – aceno que não com a cabeça.

– Bom deixa eu pelo menos tentar te fazer lembrar de alguma coisa então! Eu te conheci... quer dizer, conheci a Íris a três meses atrás. Ela havia entrado de penetra na despedida de solteiro do meu melhor amigo, mas ninguém expulsou ela... quer dizer... você... ah! Sei lá! Nós não te expulsamos porque você era muito divertida.
- Ah meu deus! Divertida como?
- Não se preocupe! Você não fez nada demais! Você falava coisas engraçadas, dançava muito bem, era.. é muito bonita e derrotou todo mundo na competição de shots de jagermeister. Bem, todo mundo menos eu, que estava dirigindo e não bebi.

Quando a festa acabou eu me ofereci pra te levar pra casa, porque estava muito tarde e você respondeu que não precisava de baby-sitter. Daí eu te dei meu telefone, caso você precisasse de ajuda e deixei você em paz, mas fui seguindo seu ônibus de longe com o carro, só pra ter certeza de que você ia chegar bem. Sabe... você não tava nada legal... mas por incrível que pareça chegou em casa direitinho. E é por isso que eu sei onde você mora.

- Você não... subiu comigo?
- Não! Quer dizer... Não nesse dia. - ele apóia a cabeça nas duas mãos e solta um longo suspiro – Puxa, eu realmente não acredito que você não lembra de nada!!
- Isso acontece quando você se aproveita de mulheres bêbadas – ouço minha própria voz sair irritada – elas tendem a não se lembrar muito das coisas!
- Não foi nada disso! Você me ligou no dia seguinte e me deu seu endereço. Disse que eu tinha sido muito legal com você na noite anterior e agora você queria me agradecer... Você estava completamente sóbria!! Nós saímos pra dançar, depois fomos andando até a praia, porque você queria ver a lua. Tomamos banho de mar... – ele olha pra mim com tristeza – você foi tão... perfeita!

Sinto-me ligeiramente humilhada pelo “foi”. Se eu ainda sou a mesma pessoa ele devia ter dito “é”... não devia?
- Olha, Edgard... de repente foi um daqueles porres que dura dois ou mais dias sabe? Você não deve ter percebido que eu ainda estava bêbada. Eu sinto muito por não ter ligado pra você depois de uma noite tão “perfeita”, mas é que eu realmente não lembro de nada!
- Não! Você não ta entendendo de novo! Você me ligou sim! Íris, nós estamos namorando... quer dizer... ficando... sei lá como você chama! Há quase três meses!!
- Isso é impossível. Eu não sei que piadinha é essa que você ta fazendo, mas, quer saber? Seja lá o que for que você ta querendo de mim é melhor esquecer. Não vai colar. Meus amigos te conheceriam se a gente estivesse “namorando”. Eu com certeza teria fotos com você, seu número no meu celular e...

Enquanto estou falando ele puxa o celular dele do bolso, dá alguns toques e começa a me mostrar fotos de nós dois juntos. Todas à noite, mas definitivamente em dias diferentes. Mal posso acreditar nos meus olhos! Aquela ali sou eu mesma, mas tão diferente, tão... sei lá... fatal!
- São todas à noite... – consigo dizer em meio à surpresa.

Ele sorri, como quem lembra de algo bom que aconteceu há muitos anos atrás:
- É. Você costumava a brincar que era a Cinderella da madrugada. Que durante o dia você virava abóbora. Nunca atendeu meus telefonemas quando eu ligava de manhã e nunca me deu telefone da sua casa. Eu acabei achando divertido. Você tem esse jeito de fazer as coisas mais loucas do mundo parecerem uma ótima idéia!

Peguei meu telefone na bolsa rapidamente e comecei a procurar o histórico de ligações:
- Não tem nenhuma ligação perdida aqui...
- Ei! Esse não e o seu aparelho!
-Claro que é!
- Não é não! Seu aparelho é daqueles velhos que não têm nem câmera! Você dizia que era besteira gastar dinheiro comprando uma coisa que você iria usar tão pouco quanto um celular!
- Não, meu aparelho é esse aqui. Já tem alguns meses de uso, mas está praticamente novo! Tem câmera, MP3 e tudo o mais que qualquer aparelho de hoje em dia tem.
- Então você deve ter perdido o outro..
- Não perdi! Há 6 meses que não mudo de aparelho.
- Calma não precisa se impacientar! Não esquece que a gente ta só conversando. Tem que ter alguma explicação pra isso tudo.
- Tem sim. Um de nós está ficando maluco.
- Nesse caso a maluca teria que ser você, porque os meus amigos te conhecem.

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Entro no elevador irritada. O Edgard vem logo atrás de mim e teve que parar a porta com a mão pra eu não subir sem ele. Permanecemos em silêncio até chegarmos no meu apartamento. Eu consigo perceber que ele está meio constrangido e bastante aborrecido, mas estou muito irritada pra conversar.
- Acho melhor você ir dormir na sua casa hoje. Estou cansada.
Ele olha em volta da sala, parece meio distraído, o que me irrita mais ainda:
- Estava lembrando daquela história que você contou hoje no bar. Do velho oriental com o relógio.
- Edgard, eu não estou a fim de papo.
- Quando foi que você disse comprou mesmo?
- Sei lá... em fevereiro! Qual a parte de “não estou a fim de papo” você não entendeu hein?

Ele olha pra mim de uma forma estranha, como se estivesse tentando decifrar em que linguagem eu estou falando. Depois solta um suspiro e pergunta:
- Você detestou tanto assim a noite de hoje?
- Do que eu poderia ter gostado? Dos seus amigos me chamando de Íris o tempo todo? Daquela bebida amarga horrorosa?
- Foi a primeira vez que eles saíram com “você”, você! Ainda é tudo muito confuso pra eles!
- Você me chamou de Íris umas duas vezes!! – Explodo.
- Ainda é tudo muito confuso pra mim também. Fazem só dois meses...
- Quer saber? Você ta certo! Isso tudo é uma merda de confusão! Foi uma péssima idéia a gente começar a namorar porque você é um lunático que pensa que eu sou outra pessoa. Então porque você não acaba com essa confusão toda e dá o fora do meu apartamento!!

Abro a porta com um estrondo e fico ao lado dela, esperando ele sair. Estou tremendo de tanta raiva! Não só dele, mas de mim mesma que fui me envolver nessa história que tinha tudo pra acabar em confusão! Estou com raiva porque acho que estou me apaixonando por ele e agora vou me sentir uma merda quando ele for embora. Mas quero que ele vá mesmo assim! Melhor acabar de uma vez por todas com essa palhaçada!

Ele caminha lentamente até mim e abraça minha cintura. Sinto minha raiva abrandar como um chama que de repente é atingida por um jato de água fria.
- Eu não vou a lugar nenhum. – ele fecha a porta – estou apaixonado por você.
- Você está apaixonado pela Íris – resmungo, com uma careta.
- Nós vamos fazer isso dar certo – ele ignora meu comentário – confia em mim. Quando eu estou perto de você eu sei! Tenho certeza de que não quero nenhuma outra pessoa na minha vida.

Ele me abraça mais apertado e eu sinto minha respiração ficar igual a dele. Uma sensação boa de paz me envolve completamente e eu deixo que ele me leve até a cama.
- Vou buscar a garrafa de vinho pra gente. – ele diz, com uma piscadela de olho.

Eu me deito na cama e espero. Ele volta da cozinha com a garrafa e e me serve uma das taças. Bebo um gole e ela me beija. Seu olhos estão com uma expressão estranha. Uma espécie de esperança e... culpa....

Começo a me sentir sonolenta. Ele tira a taça da minha mão e se levanta para colocá-la na mesa de cabeceira. Meus olhos estão pesados... Ouço um barulho de algo caindo no chão e imagino que foi a garrafa. Viro a cabeça preguiçosamente pra ver se ele se cortou, mas percebo que foi o relógio que caiu. Vejo Edgar pisar mais umas duas vezes com força em cima dele:
- O que você está fazendo? – Pergunto, mas minha voz saí baixinha. Estou sentindo tanto sono!
- Fique tranqüila. Ele toca meu ombro de leve. Eu arrumo essa bagunça.

Estou caindo num sono tão profundo que é como se estivesse saindo de dentro de mim mesma. Minha cabeça está flutuando naquele estado gostoso de pré-inconsciência e eu sinto que vou começar a sonhar a qualquer momento. O som ambiente do quarto vai diminuindo, mas antes que eu mergulhe no silêncio absoluto ouço a voz de Edgard:
- Íris! Finalmente descobri o que tinha acontecido! Eu te trouxe de volta! Senti tanto a sua falta.
E então eu ouço minha voz, mas não sou eu que estou falando!
- Muito obrigado... seu idiota!!!
Ouço uma pancada e o som abafado de algo pesado caindo no chão. Sinto um arrepio ao ouvir minha gargalhada alta e... cruel. (Mas eu não estou sorrindo!)

E então o silêncio...

3 comentários:

Caldas disse...

Cara, simplesmente espetacular!!! Eu me arrepiei com este conto, literalmente MESMO!!! A escrita está perfeita, mas a idéia... a originalidade... nossa, Monstrinha, meus parabéns. Mesmo!

raylsonbruno disse...

Gostei bastante da sua estória e o modo como a contou, cheguei a sentir um pouco de pressa de sua parte, em acabar, mas nada que tenha prejudicado o conto. Você foi muito convincente nos detalhes, fiquei até com medo de encontrar a Irís pela rua, ou de penetra em alguna festa... ;)

Parabéns²

Anônimo disse...

Obrigada pelos comentários!
Adorei ter sua visita no blog... gostei muito daqui também, vou linkar lá... ótimos textos!

Quanto ao " O infinito de uma espera" entendo bem o que quer dizer, sempre tivesse medo também. Uma angústia de não querer perder tempo, de começar a viver logo, mas parecer que a vida nunca começou.

E na verdade, tanto esse texto quanto o outro, acabam falando sobre buscas. Sobre estar sempre esperando, ou buscando, sobre o medo de ficar anestesiado diante de tudo.
Mas reviravoltas são boas sim! Faz a gente se sentir um pouco mais vivo!

Vou passar sempre por aqui! :)

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