terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Diferente

Se pudesse, eu nem tinha aberto os olhos quando acordei naquela manhã.
Pra falar a verdade, eu bem que tentei por um tempo. Levantei da cama com os olhos fechados e, automaticamente procurei tatear meus óculos na mesa de cabeceira... rotina idiota! Ainda sem abrir os olhos, joguei os óculos longe. Ouvi o barulho de algo se chocando contra parede, de vidros se partindo, de algo caindo no chão. Não estou muito certo se essa foi a ordem exata dos acontecimentos, mas quem se importa?

Levantei ainda de olhos fechados e topei com o pé esquerdo no pé da cama, depois dei uma joelhada na porta do armário, que havia ficado aberta na noite passada. Uma cabeçada na porta do quarto, que ainda estava fechada e então percebi a claridade: Eu estava na sala.
Normalmente eu teria ido direto lavar o rosto, mas não naquele dia! Ah, não mesmo!

Mais algumas topadas doloridas pelos móveis e eu cheguei na geladeira, às cegas, escolhi a primeira coisa que veio na minha mão. Pesei que era uma maçã, mas era uma cebola! Ótimo! Eu nunca havia mesmo mordido uma cebola. Não era tão ruim... não tão amargo quanto o gosto daquelas palavras da noite passada...
Comi a cebola até o final. Acho que estava com casca... Tateei uma garrafa, imaginando que tomaria um gole de água, mas era o concentrado de guaraná natural. O gosto intensamente doce da bebida me provocou náuseas imediatas.
Em qualquer outro dia eu teria cuspido na mesmo hora, mas naquela manhã eu continuei bebendo... até que não restasse mais uma gota na garrafa.

Terminei de me arrumar ainda com os olhos fechados. Fui escolhendo as primeiras peças que vinham à minha mão no guarda roupas. Me vesti da melhor maneira que pude, peguei a carteira e a chave que estavam ao lado da porta e saí para o trabalho. Nada de elevador!! Dessa vez eu ia descer os seis andares de escada.
Acho que não foi mesmo uma boa idéia descer escadas de olhos fechados... Os dois primeiros lances até que foram bem, mas depois eu fiquei confiante de mais (esse sempre foi o meu erro mesmo). Um passo em falso e no minuto seguinte eu estava rolando escada abaixo.

Abri os olhos instintivamente no início da queda, mas não pude reconhecer o ângulo da minha visão. Fechei os olhos de novo rapidamente e continuei caindo. Senti um degrau raspar algumas costelas, um outro suportou três pancadas consecutivas de minha perna direita e alguns outros foram se revezando entre meus braços e meu rosto. Cheguei ao final da queda com um sentimento de alívio. Aqueles segundos pareceram durar para sempre, exatamente como os da noite anterior... mas a dor dessa vez não era tão intensa.

Pra ser sincero, eu tenho que reconhecer que a dor física que senti naquele momento foi uma distração. Os minutos que passei caído ao pé daquela escada, sentindo as pontadas agudas de dor no corpo, foram na verdade os mais agradáveis das últimas 12 horas.

Passei pela portaria e cheguei na rua. Agora eu ia ter que abrir os olhos mesmo, mas aquilo já não importava tanto... Manquei até a metade do caminho para o meu carro e desisti. Eu não estava com os óculos e minhas pernas ainda doíam incrivelmente. Melhor pegar um táxi.

Cheguei no escritório e minha secretária, por mais discreta que tentasse parecer,não conseguiu evitar o olhar de surpresa e estranheza que me lançou. Percebi que outros colegas meus me olhavam da mesma forma e procurei no espelho algum motivo para aquilo.
Motivos não faltavam! Pra começar meu cotovelo e meu queixo estavam sangrando, minha camisa estava abotoada muito incorretamente, e a calça que eu estava usando era de um smoking que eu havia usado num casamento da semana passada!
Não pude deixar de rir com a cena. Acenei para eles de maneira casual e entrei na minha sala. Ao lado dos documentos que eu tinha para ler e assinar naquela manhã, estava um porta retrato. Um porta retratos que olhava para mim com seus sorriso angelical e dizia:
" Você é um pobre coitado! Um fracassado miserável".
"Eu sou sim!" - Respondi em voz alta - "Mas isso é tudo culpa sua!"

Peguei o porta retratos e fui até a minha secretária: "Guarde isso no meu cofre."
"Ah... no cofre do banco?"
"Sim! Por acaso eu tenho algum outro cofre?"
"Não senhor." Disse ela, pegando o objeto da minha mão.
"Vá agora. E tome cuidado!"
"Sim senhor... anh... senhor?"
"O que?"
"Está tudo bem?"
"Sim. Está." Respondi, indo em direção à porta de saída.
"O senhor vai sair?"
"Vou, mas não desmarque a reunião."
"Mas... já estão todos aguardando pelo senhor na sala..."
"Deixe eles lá!"

Saí do escritório e comecei a caminhar. Minha intenção era de dobrar em todas as terceiras esquinas para a esquerda, até que meus ferimentos deixassem de doer.

No meio da tarde meu celular começou a tocar. Eu já estava a dois bairros de distância. Em um dia normal eu teria atendido e falado para a minha secretária cancelar meus compromissos, mas não naquela tarde!
Parei numa barraca de cachorro quente e troquei meu celular "smart phone" por um sanduíche e uma lata de refrigerante. Esse foi outro momento bastante agradável do meu dia.

Só comecei a sentir sono realmente dois dias depois do início da minha caminhada. Eu já não fazia a menor idéia de onde estava! O sol estava forte e eu havia chegado à estrada... não tinha mais esquinas. Não haveria um outro caminho a seguir por um bom tempo.
Ela estava certa! Por mais que eu lutasse, sempre acabava chegando a essas situações onde eu era impelido a fazer algo previsível, por mais que eu tentasse pegar as esquerdas, acabava sempre voltando para uma linha reta!

Era mais do que deprimente! Aquela imensa via reta que se estendia a perder de vista na minha frente era desesperadora!

Tive vontade de dobrar aquelas linhas de concreto com os meus próprios braços! Tive vontade de gritar, de xingar, de entrar naquele mato que beirava a estrada e adquirir alguma doença bem incomum! Ser picado por algum inseto raro... qualquer coisa!
Deitei debaixo de uma árvore morta que observava a minha confusão e acordei apenas no dia seguinte. Estava ventando muito!

Os galhos mortos dançavam acima dos meus olhos... A princípio eu achei que fosse apenas de alegria, mas foi então que eu entendi: ERA UM APELO! "Vá!" - dizia a árvore morta - "Olhe pra mim, fiquei plantada aqui por toda a vida e agora é tarde demais! É tarde demais para mim, mas você ainda pode ir!"
"Venha comigo!" - Dizia o vento! "Venha logo!"

Eu levantei ainda confuso e percebi que meu corpo não doía mais. Decidi que atenderia ao apelo dos mortos naquela manhã. Olhei para a árvore seca e me preparei para dizer-lhe adeus, mas nesse momento, desprendeu-se de um galho mais alto, uma folha, pequena: Estava verde! "Leve-me com você!" - Pedia ela.
Eu a coloquei no bolso e segui o meu caminho. A direção da ventania parecia me apressar para um destino que ela já conhecia. Parecia ansiosa que eu chegasse logo. Fui andando o mais rápido que pude.
Segui aquela ventania por dias, semanas, meses. Às vezes ela parava em algum ponto, pra que eu pudesse descansar. Às vezes me dava uns dois ou três dias de folga e então voltava, intensa, guiando-me para seu refúgio desconhecido.

Vários meses já deviam ter se passado (eu já havia esquecido como se mede o tempo). Até que um dia, ao me levar até uma praia, minha "guia" começou a soprar mais forte. O recado era simples: "atire-se ao mar".
Eu hesitei e a brisa pareceu ofendida. Começou a soprar mais forte, furiosa. Eu havia confiado nela até ali, não era justo que desconfiasse agora. Compreendi que não poderia mesmo desapontá-la daquela forma e comecei na nadar.
Depois de um certo tempo, meus músculos começaram a cansar, mas o vento trouxe da praia uma tampa de isopor para mim. Fiquei boiando por várias horas, entregue a vontade máxima daquela brisa suave. Acabei por chegar a um conjunto de corais.

Havia um pequeno veleiro, já bastante danificado, preso entre duas rochas paralelas. Quando eu entrei, percebi que ali havia acontecido um desastre! Eles haviam enfrentado uma tempestade e pelo jeito estavam presos há dias naquele lugar. Comecei a vasculhar o interior da embarcação e encontrei uma mulher caída.
A princípio pensei que estivesse morta, mas ela estava apenas ferida, desmaiada. Cuidei dela como pude e naquela noite tivemos uma outra tempestade.
A maré subiu mais, libertando o barco das rochas e o vento nos levou até uma praia da ilha que estava a pouca distância dali.

Já faz alguns anos que isso aconteceu, mas só hoje eu voltei a velejar pelos mares de minha antiga cidade. Aquela folha verde que eu trouxe comigo da árvore morta nunca morreu. Eu a deixo sempre ao lado do leme, para que veja junto comigo aonde estamos indo.

Alguma coisa na forma como o vento soprou nessa tarde fez com que eu lembrasse de toda essa história e das palavras duras que eu ouvi na noite anterior ao dia em que nasci.
Num dia normal essas lembranças teriam me provocado dor, num dia normal aquelas palavras teriam me feito chorar. Mas não hoje. Não mais.

1 comentários:

Caldas disse...

O vento leva...

Gostei do texto. Um dia, espero ouvir este chamado.

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