- Um brinde à essa vitória!
- Um brinde? Sério mesmo?
- Sério, ué! Qual o problema?
- Me parece um pouco... inapropriado. Dadas as circunstâncias...
- As circunstâncias? As únicas circunstâncias que importam
aqui é que tudo está resolvido. Você está bem, eu estou bem... você está VIVA!
Quer me dizer que isso tudo não merece um brinde?
- Talvez você tenha razão...
- Claro que tenho
Ele respondeu e o som macio da rolha se
abrindo fez refrão à sua certeza.
- Vinho? Tem mesmo que ser uma bebida tão... vermelha?
- Ei, o vermelho sempre foi sua cor preferida. Eu não vou
deixar você perder mais iss...
- Tudo bem, tudo bem. Você está certo. Só me deixa lavar as
mãos primeiro.
- Do que você está falando? Suas mãos não estão sujas.
- Tá brincando? Olha só pra elas!
Estendo minhas mãos ainda trêmulas pra que ele veja,
enquanto eu mesma desvio o olhar. Ele toma minha mão direita e a leva até o seu
próprio rosto, com gentileza. Eu só posso observar enquanto sua face, seus
olhos, seus cabelos tornam-se rubros ao meu toque.
O ar está pesado e ainda ecoa os últimos momentos vividos
neste lugar, mas agora, ao invés do pavor, é algodão que preenche cada
milímetro ao nosso redor: uma matéria suave feita de alívio e perplexidade que
pesa sobre meus ombros e dentro da minha alma como a mais macia das nuvens de
primavera.
Estou hipnotizada pela quantidade de sensações que disputam
minha atenção nesse novo silêncio, enquanto compartilho com um cúmplice involuntário
as evidencias viscosas de minhas últimas ações. E ele está tão ansioso para
fazer parte de tudo isso, para demonstrar que está ali, ao meu lado, mesmo
nesse momento que ele não tem condições de compreender! Não completamente.
Sua lealdade inocente me traz aos lábios um sorriso exasperado
e ele percebe.
- Você acha que eu sou um completo tolo, não é? Acha que eu
não sei nad...
- Você não é tolo. Você é a companhia mais leal que eu já
tive em muito tempo... talvez a mais leal de todas. Mas não. Você simplesmente
nunca vai poder compreender completamente. E isso é bom. O fato de você estar
aqui seria suficiente. O seu apoio mesmo sem a compreensão total é muito mais
do que eu poderia pedir e mesmo assim você me ofereceu.
Eu sirvo o vinho em duas taças e entrego uma delas em sua
mão.
Ele brinda comigo feliz, bebendo ao que ele considera uma grande
primeira vitória num longo caminho de aventuras e conquistas.
Mas minha taça está cheia de um algodão adocicado que brinda
apenas a fugacidade deste momento de esperança. Ainda que ela não seja minha.