sexta-feira, 25 de março de 2011

O Apartamento 7

Isabella arrumou seu cabelo e olhou-se no espelho pela milésima e última vez: As pupilas dilataram-se dentro dos olhos claros, tentado enxergar os detalhes que a penumbra daquele aposento escondia. A luz das velas dava um tom quase vampírico ao seu longo cabelo negro, em contraste com sua pele muito clara.
Ela ainda não podia acreditar que estava ali. Era loucura, ela sabia, mas mesmo assim estava ansiosa para que acontecesse logo. Aquele seria o encontro mais estranho que já tivera em sua vida... e também o mais misterioso, mais emocionante, mais potencialmente perigoso...
Mas também poderia ser o melhor de todos...

O apartamento ainda estava vazio. Ela e sua mania de chegar adiantada!
Arrumou por uma última vez o decote do vestido branco e mais uma vez se sensurou por ter escolhido aquela roupa! Não era apropriada!
Devia ter escolhido algo mais sensual... aquele vestido branco, com seu tecido leve e seu corte angelical a fazia parecer uma virgem assustada. Nem de perto lembrava a mulher experiente, sexy e decidida que ela queria parecer naquela noite.
Soltou um suspiro resignado e caminhou até a varanda, para esperar. Agora não havia mesmo como voltar atrás.

Edgar sorriu satisfeito para seu reflexo no espelho. Experiente e confiante, a facilidade com que conseguia levar as mulheres mais lindas que via para a cama chegava quase a aborrecê-lo. Na maioria das vezes elas não eram nem de longe tão boas quanto em sua imaginação e os momentos de prazer passavam rapidamente para um aborrecimento profundo.
Por isso ele havia resolvido, há algum tempo atrás, experimentar novas formas de fazer amor, buscando na novidade parte da excitação que a facilidade havia lhe roubado.
Já havia feito muitas coisas nessa sua busca por ocasiões diferentes: Os mais variados tipos de encontros, com os mais variados números de participantes, com as mais variadas belezas femininas.
Não tinha muitas restrições morais, mas duas exigênciaa pessoais ele nunca transgredia: Só fazia amor com mulheres maiores de idade e que estivessem com ele por vontade própria. Recusava-se a pagar ou forçar algo que tanto gostava de conquistar por empenho próprio.
Entrou em seu carro, dirigiu-se para o local combinado, ainda com um sorriso no rosto. Há muito tempo não tinha conhecimento de uma idéia tão original e interessante quanto a do "Apartamento 7".
Essa seria uma boa noite. Ele podia pressentir isso.

Isabella torcia as mãos de nervosismo. Por duas ou três vezes pensou em pegar a bolsa e ir embora, mas a lembrança de seu apartamento vazio e de sua vida - tão vazia quanto - a fizeram ficar.
Os poucos minutos pareceram uma eternidade até que então ela ouviu o barulho da chave na fechadura e seu sangue gelou imediatamente: Ele havia chegado.

Edgar abriu a porta do apartamento 7 e demorou um pouco para acostumar seus olhos à penumbra. Como lhe tinham dito, não haviam lâmpadas no imóvel. Todo o local era iluminado unicamente por velas. Ele checou rapidamente que as outras coisas que lhe falaram sobre o apartamento também eram verdade: havia um aparelho de som (ele precisava levar de casa o cd que queria escutar), um vinho de excelente safra e uma caixa de chocolates sobre a mesa. Reparou satifeito que o último item da lista também estava lá: uma belíssima e desconhecida mulher esperando por ele.
A moça virou-se para encará-lo no momento em que abriu a porta. O vento agitava seu vestido branco e seu cabelo, fazendo com que ele tivesse a breve impressão de que ela acabara de chegar voando pela varanda.

Ela estava insegura. Ele percebeu imediatamente. O sorriso fácil e satisfeito com que suas "blind dates" costumavam recebê-lo não estava em seu rosto. Ela o examinava séria, um pouco constrangida, um pouco desconfiada. Talvez pensando em desistir de tudo e ir imediatamente pra casa.
Ele gostou disso. Edgar entrou com seu passo confiante, sem voltar a olhar para a moça na janela. Colocou o cd que havia escolhido e uma voz sensual encheu o apartamento, cantando num idioma desconhecido.

Isabella permanecia paralisada, agora ainda mais arrependida do que antes por estar ali. Olhou de relance para a bolsa e se imaginou simplesmente saindo pela porta, sem trocar uma palavra com aquele desconhecido.
Mas ao invés de fazer isso, ficou apenas observando enquanto ele, de costas para ela, abria a garrafa de vinho.
Edgar serviu as duas taças, tirou sua jaqueta e a colocou sobre o encosto da cadeira e depois caminhou para a varanda.

- Então você é a misteriosa Isabella. - Disse ele, olhando em seus olhos, mas sem sorrir e oferecendo para a moça uma das taças.
- Você sabe o meu nome? - Perguntou ela surpresa, aceitando a taça.
- Sim. - Respondeu ele, sem dar mais informações, e tomou um gole do vinho, com os olhos fixos nos dela.
- Eu não fui informada sobre o seu nome - Disse ela, um tanto confusa.
- Eu sei disso. - Respondeu Edgar outra vez.

Isabella ia dizer mais alguma coisa, mas ele a tomou pela mão, com um sorriso nos olhos. Ela o seguiu e os dois começaram a conhecer juntos os outros aposentos do apartamento.
A sala em que estavam terminava em uma cozinha americana, que tinha ao fundo uma escada para subir à cobertura.
Mas Edgar optou pelo um corredor à esquerda. Todo o apartamento era forrado por um tapete macio e espesso numa cor próxima ao laranja. O corredor que seguiam tinha duas portas: A primeira era a porta do quarto, que tinha uma imensa cama com lençóis num tom marfim e ladeada por dois exuberantes castiçais de prata. As velas que queimavam neles davam às bordas da cama um brilho dourado que transmitia uma mensagem muito clara: DESEJO.
O teto sobre a cama era de vidro e podia-se ver o céu estrelado do lado de fora. Isabella quase perdeu o fôlego quando viu a beleza do aposento, mas Edgar, sem dizer uma palavra, a conduziu pela mão para fora do quarto.
Outra porta do corredor era um banheiro: Com uma imensa banheira de hidromassagem toda em mármore. Espelhos por todos os lados, refletindo as chamas das velas e as pétalas de flores do campo espalhadas pelo chão.
Isabella achou esse aposento ainda mais bontio do que o quarto, mas outra vez, Edgar a levou de volta para o corredor. Os dois atravessaram outra vez a sala e subiram as escadas, em direção à cobertura.

- Você já veio aqui antes? - Perguntou Isabella, enquanto subiam as escadas.
- Não. - Respondeu Edgar.

Isabella continuou subindo os degraus, mas começava a ficar incomodada com o silêncio de seu parceiro. Por que ele era tão rápido em suas respostas? Por que não estava tentando puxar assunto, quebrar o gelo...
Será que ele estava decepcionado? Será que esperava uma mulher mais bonita? Mais... sexy?

Isabella sentiu uma imensa vergonha: estava fazendo papel de boba! É claro que aquele tipo de encontro não era para pessoas como ela: tímidas, inseguras, pouco experientes. Esse era o tipo de programa para pessoas resolvidas, seguras, experientes e atrevidas...
Ela nunca havia sido nada daquilo!! Não deveria estar ali e esse homem á sua frente já tinha percebido isso! Que vergonha!

A cobertura estava fresca e bem iluminada. Havia uma piscina e uma espécie de pirâmide de vidro que se levantava do chão e através da qual se podia ver o quarto, lá embaixo. Edgar a levou para perto da mureta de vidro. Ela distraiu-se por uma fração de segundos com a beleza da vista e quando olhou para ele novamente viu que ele olhava fixamente para ela, com aquele mesmo sorriso no olhar que parecia estar dizendo alguma coisa que ela não conseguia entender.

- O que está olhando? - Perguntou ela, abaixando os olhos.
- Estou tentando olhar, mas não consigo. - Disse ele, levantando o queixo dela com a mão, para que seus olhos se encontrassem de novo.
- Tentando olhar o que? - Disse Isabella, dessa vez olhando para os olhos dele.
- Olhar dentro de você. Pra ver se entendo.
- Se entende???
- Se entendo o que você está fazendo aqui.
- Eu estava agora mesmo me fazendo essa pergunta - Respondeu ela, corando da cabeça aos pés.
- E então?
- Ainda não achei a resposta. Eu... me sinto meio estúpida...
- O que você está fazendo aqui, Isabella?
- Eu não sei... acho... que tenho me sentido muito sozinha.
- Esse não parece o seu método preferido de conhecer novas pessoas...
- Eu... tenho um pouco de dificuldade em conhecer novas pessoas...
- Você é uma mulher linda. Não deve ser difícil encontrar em qualquer lugar algum homem disposto a sair com você. Porque não tentou lugares mais fáceis e ambientes mais tradicionais como bares, restaurantes, boates...?
- Porque... - Isabella pensou um pouco e respondeu, decidida - Porque não tem graça.

Edgar sorriu, parecendo satisfeito com o que tinha ouvido, e tomou mais um gole de vinho. Isabella dessa vez bebeu também e olhou em volta, imaginando que aquela piscina talvez fosse o lugar perfeito para fazer amor com aquele desconhecido.
Mas Edgar a pegou pela mão e a conduziu escada abaixo novamente.
Ela o seguiu em direção à varanda, pisando no tapete macio e felpudo a seus pés. Sob a luz das velas e os raios de lua que entravam pela varanda aberta, ele tomou a taça da mão dela e colocou sobre o parapeito. Então, com sua mão direita, tocou o rosto de Isabella. Acariciou por alguns instantes sua boca e enquanto a mão esquerda já soltava uma das alças do vestido branco. Sua mão direita desceu para o decote, soltando a outra alça e vestido deslizou suavemente pelo corpo de Isabella, caindo como uma folha de outono sobre o carpete. Isabella permaneceu parada, entregue às carícias daquele desconhecido. O constrangimento inicial havia desaparecido totalmente e agora dava lugar a uma excitação crescente, que ela jamais havia experimentado.
***

Algum ruído fez com que seus olhos se abrisse na manhã seguinte.
Ela não estava mais na varanda e havia uma pirâmide de vidro sobre sua cama, fazendo com que cores alegres dançassem pelas paredes do aposento com a entrada do sol . Ela ainda se sentia num conto de fadas. Por um momento teve vontade de recolher todas aquelas gotas de luz das paredes e levá-las na bolsa para sua casa.
Como exigiam as regras do Apartamento 7, não havia mais um braço à sua volta, porém ela estava coberta de pétalas de flores e um breve bilhete abaixo do travesseiro dizia: “Agora sou eu quem sei exatamente o vim fazer aqui.”

Ela se levantou, tomou um banho quente e, antes de sair, assinalou a opção “sim” num papel que estava sobre a mesa.

Edgar chegou em casa com a sensação de que havia vivido algo realmente especial e embora sempre conseguisse abstrair essa sensação para evitar um interesse maior pelas pessoas, dessa vez ele simplesmente não conseguia parar de pensar em Isabella. E o pior: estava decidido a encontrá-la de novo.
Ele tomou um banho e sentou-se no sofá. Não queria ficar relembrando a noite perfeita que tivera e também não queria ficar suspirando, fazendo planos futuros... queria apenas aguardar tranqüilamente o desenrolar dos acontecimentos.
Pegou o cd que havia escutado na noite passada e colocou pra tocar. Recostou a cabeça na poltrona e ficou ouvindo, de olhos fechados, até que de repente algumas notas diferentes invadiram seus ouvidos...
Ainda com os olhos fechados, ele sorriu e atendeu o telefone.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Confetti

Vesti a fantasia e pensei: "Porque não?"
Afinal, já tinha algum tempo que eu vinha me sentindo uma super-heroína. Desconfiava que tinha desenvolvido algum poder ou super-habilidade e aquela seria a ocasião perfeita para testar essa teoria.
Saí de casa e no meu caminho pela rua avistei pelo menos outras três mulheres com uma fantasia parecida. Mas a minha tinha aquele segredo. A delas era só uma fantasia mesmo.

Cheguei na praça. Estava calor.
No meio do céu azul claro o sol brilhava sem nenhuma reserva e eu fui pra baixo de uma árvore, não à procura de sombra, mas pra olhar pra cima. Eu sempre gostei da combinação do verde das folhas diretamente sob o azul puríssimo do céu. Fiquei com um sorriso meio idiota na cara, observando a dança preguiçosa das folhas na brisa quente. Sentia-me leve e feliz como um balão que acaba de ser solto no parque.

Aos poucos comecei a me dar conta dos sons ao meu redor. A praça estava tão cheia!
Música alta, pessoas conversando, sorrindo, cantando... todas muito coloridas, com chapelões absurdos, máscaras, espadas de plástico e tantas outros acessórios que de tão ridículos eram lindíssimos!
Uma explosão caótica de cores, sons, cheiros e sensações que elevavam o meu humor a um estado de quase transe eufórico.

Resolvi começar os testes: me aproximei de um carro azul turquesa que estava estacionado no meio da praça, e, sem nenhuma vergonha de parecer ridícula, tentei levantá-lo. Ele não se moveu, mas as pessoas em volta gostaram da minha tentativa e começaram a bater palmas, sorrindo e dando gritos de incentivo!
Senti uma leve decepção, porque super força era o poder que eu teria preferido, mas a simpatia das pessoas à minha volta redobrou o meu ânimo!

Me afastei para um novo ponto da praça e tentei o segundo teste, um pouco mais discretamente. Estendi uma mão e tentei fazer com que uma lata de cerveja saísse do isopor do camelô e viesse parar na minha mão. A telecinésia não funcionou, mas o camelô viu minha mão estendida e achou que eu estava interessada em comprar a bebida, por isso tirou uma lata de Antártica do fundo do gelo e botou na minha mão dizendo: "uma é três, duas são cinco".
Paguei os três reais e me afastei outra vez, sentindo o gole gelado refrescar cada órgão por onde passava dentro do meu corpo.

Mais ou menos duas horas se passaram enquanto eu realizava outras tentivas em volta da praça. Eu já havia riscado da minha lista de possibilidades: a imunidade à dor física, a visão de raio-x(outro grande desapontamento), a habilidade de controlar fogo e água, a auto-cura e a super velocidade, que me rendeu um fracasso um tanto quanto embaraçoso.

Já sentindo o bom humor inicial começar a ser subtituído por uma impaciência meio irritada, saí do meio da multidão e comecei a caminhar por uma das ruas paralelas, onde o esqueleto de um carro alegórico estava abandonado desde a noite anterior, após o desfile.
Caminhando no sentido oposto, ou seja, vindo em minha direção, estava um homem que parecia ter acabado de chegar ao local. Ele não vestia fantasia nenhuma, mas usava um "cap" de capitão. Lembrei de um outro superpoder que eu ainda não tinha tentado e olhei em seus olhos, na tentativa de ler seus pensamentos.

Por alguns instantes achei que havia funcionado porque quando nossos olhos se cruzaram eu senti algo se agitar dentro de mim causando um calafrio que percorreu todo o meu corpo. Mas não demorou pra que eu percebesse que não estava lendo os pensamentos dele. Seus olhos me encaravam, mas eu permanecia perdida naquele verde profundo e silencioso, como um barco à deriva em alto mar.

Ele se aproximou e abriu um sorriso discreto, como se já me conhecesse há muito tempo. Com uma piscadela de olho ele pegou minha mão e falou: "vem comigo."

Eu o segui e ele me ajudou a subir no carro alegórico abandonado. Chegamos ao topo do lugar resrvado para o destaque mais alto e e observamos juntos por alguns segundos a praça, que ao longe, parecia infestada de formigas coloridas.

Então ele tocou de leve meu rosto, me beijou e eu percebi com muita satisfação que estavamos voando.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Jornada ao Fim da Primavera

Tudo começou por culpa dele próprio. Quem mandou ficar me provocando daquela maneira? Ele achava mesmo que eu não teria coragem? Quis pagar pra ver e teve uma baita decepção.

Eu saí de casa deixando a porta aberta e corri pra não ver que ele vinha atrás, sem entender nada, disposto a me convencer a ficar.
Fugi. Fugi de dois anos de alegria, porque era desesperador ver no que tinham se tornado. Fugi do dinheiro que eu havia perseguido, fugi da esperança, fugi do sonho. E acordei num lugar totalmente novo, resolvida a nunca mais pensar no passado, nem para lembrar as coisas boas, nem para lamentar as coisas ruins.

Tudo o que eu tinha era o presente, iria pensar apenas em preocupações que fossem imediatas e naquele exato momento minha única nescessidade era... escovar os dentes!
Mas voltar para a minha casa estava fora de cogitação. Eu nunca mais pisaria naquele lugar de novo! Um chiclete de menta ia ter que resolver o meu problema por enquanto.

E foi exatamente ao comprar o chiclete que eu tive a certeza do que eu queria fazer em seguida: na padaria tinha um cartaz, um comercial de cigarro, que mostrava a foto de uma montanha cheia de neve. Eu sempre quis ver a neve e só há uma região aqui no Brasil que neva: O Sul.

Decidi que era para lá que eu iria. Ainda estávamos na primavera e eu tinha tempo suficiente para chegar e me estabelecer até o inverno. Seria perfeitamente possível. Eu podia pedir carona, roubar um carro, me esconder num caminhão, e por fim, se não quisesse fazer nada disso, ainda podia andar.
O importante era que, depois de muito tempo, eu finalmente tinha vontade de fazer alguma coisa fora da rotina na minha vida.

Comecei pedindo carona num ônibus que estava indo para a Avenida Brasil (esse era o meio mais prático de sair do estado, até onde eu sabia). Não foi muito difícil. Disse ao motorista que havia sido assaltada (minha bolsa tinha mesmo ficado em casa) e ele me deixou subir sem problemas. A viagem era um pouco longa e tive tempo de sobra a sós com meus pensamentos, apesar de que a última coisa que eu queria era pensar em nada que fosse relacionado ao meu cotidiano e à vida que eu estava deixando pra trás.

Enquanto estive sentada no ônibus, fiquei lembrando de um trecho de um livro do Érico Veríssimo: "Conhece a história do perú? A gente risca com giz um círculo em volta dele e o cretino acredita que está preso. Não seja como o perú. Atravesse o círculo."
No momento aquilo tudo fazia muito sentido para mim. Eu havia ficado quietinha dentro de meu próprio círculo por muito tempo, mas eu não estava presa. Podia ir embora a hora que quisesse, pra onde quisesse e era isso que eu estava fazendo agora.

Desci do ônibus no último ponto que ele faria na Avendia Brasil. Estava num lugar feio, estranho, não quis saber o nome...
Esperei um ônibus que me levasse ainda mais longe, o que não demorou muito.

Encontrar uma carona na Dutra já não foi tão fácil. Alguns carros paravam, mas eu não sentia confiaça para ir com eles e eu acabava dando uma desculpa qualquer e deixando eles irem embora, outros nem diminuíam a velocidade (esses eram a maioria).

Já estava no fim da tarde quando um rapaz parou um Uno azul no acostamento. Ele era magro, usava uma camisa de flanela e era tão pálido que parecia até um pouco doente, mas alguma coisa nos olhos dele me dizia que ele era confiável. Aceitei a carona.
Ele dirigia calado. Ouvia uma música bastante interessante e um pouco depressiva. Preferi não falar nada também.
Foi só no meio da noite que começamos a conversar. Ele perguntou se eu queria parar pra comer alguma coisa, eu disse que tudo bem. Nenhum dos dois tinha muito dinheiro (eu na verdade só tinha algumas moedas) então compramos umas frutas na beira da estrada e paramos no acostamento para comer.
Ele me agradeceu por não ter feito nenhuma pergunta no caminho (não estava muito disposto a coneversar naquele momento) e disse que me retribuiria fazendo o mesmo: sem perguntas! Queria apenas saber onde eu queria que ele me deixasse. Eu disse que o mais próximo possível da estrada que vai para o Paraná.
Depois disso voltamos pro carro e conversamos assuntos leves. Livros, música, estrelas e filmes...

Na manhã seguinte passamos por lugares belíssimos. Quilômetros de montes e planícies de grama verdíssima e cobertos pelas flores de primavera. Em uma certa altura havia um lago, um pouco afastado da estrada. Parecia um oásis no meio de um deserto de asfalto. Concordamos em parar o carro no acostamento e nos aproximar do lago.
A grama ainda estava úmida pelo orvalho da noite anterior e o sol já começava a esquentar. Ele sentou à beira do lago e começou a tocar seu violão. Eu não pensei duas vezes e mergulhei. De roupa e tudo!
Foi um dos momentos mais agradáveis que já vivi. Ficamos deitados na grama até o meio dia, desfrutando de uma paz profunda e totalmente desconhecida. Quando o sol já estava quente e minhas roupas já estavam secas voltamos ao carro.

Chegamos à São Paulo no final da tarde. Ele disse que ainda não estava pronto para voltar à realidade e se ofereceu para me levar até o Paraná. Eu aceitei, muito agradecida.
Entramos num shopping, ele sacou dinheiro e jantamos. O dia havia sido ótimo e nós estávamos realmente felizes. Meu novo amigo resolveu que preicisávamos de mais algumas coisas para uma viagem tão longa.
Comprou pra mim um vestido, um casaco e uma escova dentes (que foi o melhor presente que eu poderia ter recebido no momento!). Comprou algumas coisas para ele também.
Disse que não queria mais juntar dinheiro. Que odiava o dinheiro e queria trasformá-lo em alguma coisa útil. Compramos comida (muita!), cd's, alguns livros e depois fomos dormir num hotel bem legal.
No dia seguinte, quando acordei ele já estava pronto para partir. Havia acordado cedo e comprado um quantidade imensa de gasolina (os garrafões estavam enchendo o porta malas).

A carona até o Paraná se estendeu até o Rio Grande do Sul.
Ficamos uma semana na estrada e quando chegamos já nos considerávamos verdadeiros amigos. Ele me revelou que nunca mais iria voltar pra casa. Relsovera continuar viajando até acabar o dinheiro para gasolina e depois... quem sabe o que poderia acontecer?
Perguntou se eu queria ir com ele até a Argentina, mas eu respondi que não. Queria mesmo ficar no Rio Grande do Sul até o inverno.

Nos despedimos na estrada. Passávamos por um vinhedo e as árvores estavam lindas. Decidi que era ali onde eu tinha que ficar.
Ele parou o carro e ficamos nos olhando em silêncio por alguns instantes. Eu não sabia o que dizer! Tinha sido uma sorte muito grande tê-lo encontrado e eu não conseguiria colocar minha gratidão em palavras.
Permanecemos olhando um para o outro por mais algum tempo até que por fim pareceu que nossos olhos encontraram uma forma de se comunicar, pois eu pude ler nos dele o que ele nunca conseguiria dizer e sei que ele também compreendeu os meus. Finalmente eu saí do carro, sem dizer nenhuma palavra, mas com a impressão de que nunca tinha sido tão compreendida em toda a minha vida.
O Uno desapareceu pra sempre numa curva florida.

Eu estava mais longe do que jamais estivera em toda a minha vida. Parecia que ali, naquele lugar mágico onde o ar cheirava a uvas, nada do meu passado poderia me machucar. Todos aqueles sentimentos estavam para trás e eu podia pensar claramente, sem medo de que eles atrapalhassem o meu raciocínio.
Fui caminhando pelo vinhedo e decidi que era hora de lembrar. De repassar os fatos e minhas impressões pessoais sobre eles, pôr um ponto final onde havia ficado reticências.

Comecei analizando meu último dia no Rio e aquela briga fatídica que tinha acabado com tudo.
Eu sempre parti do princípio que tudo que uma pessoa de confiança me dissesse é verdade (é mais fácil do que viver desconfiando das pessoas que eu amo) então, sabendo disso, desde que ele havia conquistado a minha confiança (especialmente depois que passamos a morar juntos) ele já sabia que devia pensar bem antes de qualquer coisa que me dissesse, porque eu acreditaria!

Pois bem. O motivo da briga nem era tão forte assim (já haviam tido piores): um simples telefonema! Custava ele ter me esperado terminar? Mas não! As coisas tinham que ser feitas sempre na hora que ele queria!
Desde que ele tinha conseguido aquela maldita promoção, sentia-se o chefe do mundo! Nem de longe lembrava o romântico professor de literatura de cinco anos atrás.
A briga (praticamente um monólogo) começou com os resmungos dele e várias coisas bastante injustas começaram a ser jogadas na minha cara:
"Eu sempre me esforço para fazer tudo o que você quer" (mentira),
"sou sempre eu que peço desculpas" (mentira),
"você nunca reconhece que está errada" (mentira).
Menira, mentira, mentira!!!

A discussão já estava ficando irracional. Eu peguei a chave para sair e dar uma volta e nessa hora ouvi as palavras que tornariam aquele o momento mais dramático do nosso relacionamento:
"Vai, foge da briga outra vez! Você sempre volta mesmo!" Isso foi dito de uma forma bem pouco romântica. A intenção era me atingir e conseguiu. Respondi sem conter a raiva em minha voz:
"Olha que um dia eu posso não voltar... "
"Só se eu tivesse muita sorte!"

Um misto de choque e decepção me atingiram como um golpe no estomago. Dei a ele cinco segundos para pensar no que havia dito e se retratar (o raciocínio dele consegue ser bem rápido para ofender, então podia usar a mesma agilidade para se desculpar), mas ao invés de aproveitar a oportunidade, ele tratou de se jogar na própria cova:
"O que foi? Tá aí parada por quê? Desistiu?"

Bati a porta na cara do cretino e saí, com um sentimento de liberdade que há muito tempo eu não experimentava.

O som da porta batendo ecoou novamente na minha memória: um ruído surdo e precipitado ocupando o espaço de um diálogo sério que nunca havia existido:
Lembrei do silêncio magoado que sempre se colocava entre nós dois quando ele me peguntava o que estava errado. Das palavras que eu nunca disse, mas que me consumiram furiosamente quando ele me perguntou porque estávamos brigando tanto ultimamente. E de todas as vezes que respondi com ironia quando o ouvia dizer que queria me fazer feliz.

Percebi que nunca havia realmente tentado fazê-lo enxergar o quanto havia mudado. Eu o culpava em silêncio, tentando não me envolver em discussões. Esperava que ele percebesse por si mesmo que eu estava infeliz... e a porta se fechou.

De repente, no meio de todas aquelas árvores eu descobri estava sozinha de novo. Que quando as flores da primavera morressem e não pudessem mais colorir o meu caminho o verão seria vazio e o inverno seria frio demais.
As palavras que ouvi durante a minha jornada voltavam em minha lembraça, mas faziam um sentido totalmente diferente desta vez: "Vou viajar até acabar o dinheiro da gasolina". "Não seja como o perú".

Talvez o perú não fosse mesmo tão cretino. Talvez ele fosse apenas sábio o suficiente para compreender que tudo o que ele precisa está realmente ali, dentro do círculo de giz. E talvez... durante a noite, quando ninguém está vendo, ele saia tranquilamente para dar o seu passeio.
Sim, esse mundo imenso e infinito é interessante apenas para um passeio descompromissado, mas quando o verão acabar eu posso querer estar dentro do meu círculo e voltar para quem é realmente importante pra mim.

Caminhei o resto do dia pelos vinhedos. O cheiro doce do ar perfumava as lembranças da viagem, que me acompanhavam com uma sensação de sonho acordado, de fim de primavera.