quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Fim de Verão

Eu já estava a pelo menos uns dois meses andando sem rumo. Nem sei quantos bairros do Rio de Janeiro eu havia percorrido àquela altura. Dormindo na rua, debaixo de marquises, comendo salgados e refrescos que algumas pessoas me pagavam e com a ligeira sensação de que alguma coisa estava muito errada naquilo tudo.
Essa impressão começou no terceiro dia daquela loucura. Tudo o que eu conseguia lembrar era que eu acordara dois dias atrás, com o sol queimando meu rosto e a areia da praia de Copacabana provocando coceiras por todo o meu corpo.
Mais nada!

O que eu estava fazendo ali? De onde viera? Qual era o meu nome? Vazio... minha memória estava totalmente em branco. Levantei, e comecei a andar lentamente pelas ruas, sem conseguir formar nenhum raciocínio completo.

Dois dias depois eu já começava a pensar melhor. Os questionamentos começavam a surgir. E foi então que, passando pela frente de uma porta espelhada eu me vi pela primeira vez. Aquilo era impossível! Como eu poderia ser um mendigo, se estava vestido com aquelas roupas? Aquele sapato era muito confortável e parecia caro!
Coloquei a mão no bolso e senti meus dedos tocarem um maço de notas de papel. Definitivamente, eu não era um mendigo! Mas então, como? Como eu perdera a memória? Como aquele dinheiro todo fora parar no bolso da minha calça? Como eu havia dormido na areia da praia, como um vagabundo qualquer?
Como, e por quê?

Sentei atônito, num banco de uma praça qualquer. Eu tentava pensar, mas cada vez que eu fazia um pouco mais de esforço nesse sentido minha cabeça começava a doer insuportavelmente.

Fiquei olhando o movimento dos automóveis na via. Era meio dia e o calor estava escaldante, o que fazia minha dor de cabeça aumentar ainda mais. E então um ônibus parou no ponto à minha frente. Estava pintado de uma cor azul tão refrescante, tão relaxante que minha dor de cabeça passou completamente enquanto eu o observava.
Ele começou a se mover e eu resolvi seguí-lo. É claro que ele corria bem mais rápido do que eu, mas acompanhava o seu percurso até perdê-lo de vista (normalmente em uma esquina) e quando chegava até o ponto em que o tinha visto pela última vez, ficava parado até passar outro ônibus da mesma linha, para eu continuar seguindo.

Demorei um dia inteiro para chegar ao ponto final dele.
O momento mais perigoso dessa caminhada foi quando tive passar por dentro de um túnel que não tinha acesso para pedestres, mas eu não estava disposto a desistir. Naquele momento, seguir aquele ônibus era meu único objetivo e naquele momento me parecia a única causa de eu estar vivo.
Fiquei sentado perto do ponto final, esperando algum dos ônibus seguir para a garageme quando vi que um deles estava saindo, implorei ao motorista que me desse uma carona.

Acho que a minha aparência (eu já estava sem fazer a barba a uns três dias, e sem tomar banho, idem) comoveu o condutor, que me deixou subir com a condição de que eu saltasse um ponto antes de ele chegar, pra que os fiscais não vissem. Saltei no ponto combinado e fui seguindo o ônibus a pé.

Chegar na frente daquela garagem de ônibus foi uma das sensações mais maravilhosas que eu me lembrava de ter experimentado nessa vida! O muro estava todo pintado com as cores refrescantes do ônibus e eu senti uma paz tão consistente, um alívio tão profundo que meus olhos se encheram de lágrimas.
Encostei na marquise de uma casa abandonada que ficava do outro lado da rua e fiquei contemplando aquele muro até cair no sono. Permaneci naquele mesmo lugar por quinze dias.

Durante esse tempo alguns funcionários da garagem já me conheciam. Eu contei que não sabia nada sobre o meu passado e que gostava de ficar ali, olhando para o muro. Um deles caiu na gargalhada quando eu contei como havia ido parar ali, mas logo os outros o repreenderam, dizendo que aquilo não tinha graça nenhuma.
Eles estavam morrendo de pena de mim, mas eu não conseguia entender o motivo disso, já que me sentia totalmente feliz, olhando para aquelas cores celestiais. O meu mundo estava completo e quando eu dizia isso para eles, eles pareciam sentir ainda mais pena!
Traziam pão e café de manhã e à noite. Na hora do almoço, traziam uma quentinha e um copo de refresco pra mim. Conseguiram até um lugar para eu tomar banho, todos os dias.

Infelizmente, depois dos quinze dias as minhas dores de cabeça voltaram. O verão tinha terminado e os dias estavam úmidos e chuvosos. O azul daquele muro agora me dava uma sensação de afogamento e de perdição.
Levantei e fui embora, sem me despedir dos meus amigos (eles com certeza estariam usando a camisa azul e seria insuportável chegar perto deles). Pensei em deixar meu nome escrito na parede onde eu estivera hospedado, para eles lembrarem de mim, mas como eu não tinha nome, fiz apenas um buraco no gesso do muro e fui embora.

Não demorou muito para que eu encontrasse outro motivo para viver. Eu estava caminhando a duas horas quando começou um temporal. Corri para baixo de uma árvore para tentar me abrigar. Alguma coisa me fez olhar para cima e eu vi que o galho mais forte apontava para uma rua estreita.
Resolvi seguir nessa direção e lá estava outra árvore, seu galho principal apontando para outra direção.

A essa altura eu já estava ensopado, mas nada mais me importava, a não ser seguir os galhos das árvores. Eles pareciam tão seguros e fortes em suas resoluções que me transmitiam uma confiança irresistível! Fui seguindo alegremente, dançando debaixo dos pingos que caíam sobre mim.

Depois de três dias chegei ao Horto e entrei praticamente num estado de êxtase! Todas aquelas árvores firmes e seguras me indicando um caminho! Eu queria estar no meio delas, cercado por toda aquela sabedoria e estabilidade que me encantavam! Entrei na mata e fiquei andando em círculos por quarto dias.

As árvores me aconselhavam enquanto eu dormia! Cada uma era especialista em uma área e por isso me encaminhavam de umas para as outras, para que meu tratamento fosse completo.
Eu comi algumas frutas e insetos e bebi água da chuva e de pequenos riachos que cortavam as trilhas. Até que fui encaminhado para a mais sábia das árvores. Todos os seus galhos apontavam para a mesma direção e eu senti que havia alcançando o auge de todos os meus anseios e necessidades. Me aproximei o máximo que pude do tronco e finquei meus pés na lama, como se fossem raízes.
Mas a comunhão com essa árvore majestosa durou apenas uma noite. As primeiras horas do dia seguinte foram chuvosas e o vento acabou derrubando o galho mais alto e mais forte desta grande árvore e por pouco não me acertou!

Senti que meu mundo vinha abaixo junto com aquele galho. O barulho da queda despertou alguma coisa dentro de mim. Um sentimento de tristeza e de solidão que vem me acompanhando até hoje.

Pela primeira vez eu senti que faltava alguma coisa. Alguma coisa que não estava naquela floresta, nem nos desenhos dos ônibus e nem em nada do que eu tinha visto durante aquela minha jornada. Alguma coisa que era o real motivo da minha existência, e que eu precisava desesperadamente encontrar!

Pela primeira vez tive consciência de que eu estava sujo - e aquilo me incomodou. Havia uma cachoeira no meio da mata. Tomei um banho, lavei minhas roupas.
O dinheiro ainda estava lá, embrulhadinho num saco plástico. Olhar para ele me dava um mau pressentimento. Parecia que ele despertava uma memória emocional do estado em que eu me encontrava quando o adquiri.
Tive vontade de jogá-lo no riacho que corria até sumir de vista. Tive vontade de rasgá-lo e, não sei porquê, tive vontade de xingá-lo. Mas algum instinto desconhecido me fez guardá-lo.

O sol do inverno estava fraco. Eu fiquei algumas horas nú, esperando que minha roupa secasse. Pendurei-as em um galho de árvore e também tive vontade de abandoná-las. Por alguns momentos cheguei mesmo a odiar aqueles pedaços de roupa bem cortada, que pareciam uma cela móvel. Naqueles momentos em que fiquei nu, no meio da floresta, experimentei uma sensação de liberdade tão sublime, que não pude deixar de sentir um certo pânico ao pensar em me vestir outra vez.
Meu corpo parecia reconhecer nessa sensação de nudez um prazer impagável, mas o vento frio de inverno me fez querer voltar àquela "prisão de fibras".

De repente me vi pensando em como a vida era esquisita: nos impelia a todo momento a abrir mão do prazer e da liberdade em troca de um conforto e de uma segurança discutíveis. Não que, na verdade, eu me lembrasse de nenhuma outra situação que me tivesse feito sentir assim, mas de alguma forma eu sabia que já havia passado por muitas.

A roupa secou, eu me vesti, e, dentro daquela armadura, senti que estava preparado para voltar ao mundo. Na verdade, percebi que estava realmente ansioso por isso. Saí correndo da floresta e continuei correndo pelas ruas até perder o fôlego.

Eu tinha pressa de encontrar! Havia uma agonia dolorida no meu peito, me lembrando a cada segundo que eu estava vivendo à toa, uma sensação de afogamento, de vazio, de solidão... aquilo era urgente!
Mas oquê eu estava procurando? Aonde??

Os dias seguintes foram de uma tristeza sombria e de um desespero inacabável. Havia uma interrogação, um absurdo, um revolta em tudo o que e eu tentava fazer. Por quê? Pra quê? Eram as perguntas que não queriam calar. "Pra quê estou andando assim? Pra quê estou respirando? Por quê? Deve existir algum motivo."
Mas quando eu procurava uma distração, uma resposta, um alívio só encontrava a certeza interna de que não era nada daquilo o que eu queria.

As árvores agora pareciam debochar das minhas dúvidas, das minhas necessidades, da minha dor. Elas não podiam me compreender. Eram auto-suficientes, com suas raízes profundas, seus galhos altos, sua força e estabilidade. Não sentiam fome, frio, e não sentiam o vazio que estava me devorando por dentro.

Foi quando percebi que não poderia mais viver assim. A liberdade que eu julgava ter havia acabado. A alegria que eu sentia em encontrar prazer nas coisas simples havia sumido. Estava faltando alguma coisa!

Resolvi então voltar ao lugar onde tudo aquilo havia começado: a praia. Se ela não me desse a solução, as profundezas do mar poderiam ao menos calar a minha dor, para sempre!
Eu agora tinha pressa em chegar. O caminho parecia muito mais longo do que da primeira vez que o percorri.

Demoraram alguns dias para que eu encontrasse as areias de Copacabana novamente. Estava de noite. O brilho pálido da lua parecia intensificar o frio que cortava os meus ossos, a minha carne, o meu coração.
Sentei na areia e me entreguei aos pensamentos, como um mártir que se entrega a dolorosos sacrifícios, sabendo que essa é a última saída, a única solução.

Algumas coisas foram ficando claras e eu tive a certeza de que eu já havia conhecido anteriormente aquilo estava procurando. Eu só precisava lembrar...
Eu também sabia, de alguma forma, que lembrar do meu passado não seria agradável, muitas coisas ruins haviam acontecido (sensação de afogamento, abandono, prisão).

Se eu escolhesse esquecer tudo pra sempre poderia tentar me acostumar àquela agonia (que certamente não acabaria) e continuar a viver livre e despreocupado (talvez voltar para a floresta).
Considerei por um tempo essa opção: Se lembrar de tudo parecia tão insuportável, talvez fosse mesmo melhor continuar esquecendo, continuar esquecido. Peguei o embrulho de dinheiro e observei. Fui invadido pela mesma sensação de pânico, de estar encurralado, de estar preso a um ciclo infinito: Medo. Confusão. Dor...

Era melhor não lembrar! Guardei o dinheiro novamente. Deitei na areia e fiquei olhando para o céu estrelado, iluminado, infinito. Quis sentir novamente aquela liberdade. Quis sair seguindo todas as estrelas do céu, mas não podia. A agonia não deixava. Era grande demais!

Eu não poderia viver dessa forma!
Levantei e comecei a caminhar pela areia. Eu tinha que lembrar! De qualquer jeito!

Caminhei por alguns metros e então, de repente, senti meu coração disparar! Estava ali, na minha frente, e no momento que encontrei tive a certeza de que era exatamente o que eu vinha procurando todo esse tempo. A única coisa que me faltava - e me bastava - para ser feliz.

Ela estava parada. Nos seus olhos uma expressão de imensa surpresa e alívio! Olhava pra mim com desconfiança, como se não pudesse acreditar em seus prórpios olhos.

Nos aproximamos lentamente um do outro. Ela estava chorando e, para grande surpresa minha, percebi que eu estava chorando também.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Sono Profundo

O relógio está marcando dez e quinze da manhã. Não acredito que me atrasei outra vez! É simplesmente inacreditável, mas em todos os anos que eu tive insônia, bebia e acordava de ressaca eu NUNCA me atrasei pra nada. Agora, desde que comecei a conseguir dormir as dez e meia todas as noites, não consigo mais chegar pontualmente em lugar nenhum!

Enquanto visto a primeira roupa que me vem à mão na bagunça do meu armário, olho outra vez para o relógio de prata ao lado da cabeceira de minha cama e lembro do senhor oriental desdentado e simpático que o vendeu para mim numa feirinha de antiguidades da Rua do Lavradio. Ele havia me jurado que era uma relíquia de família, e que fora fabricado há mais de duzentos anos atrás, na Tailândia, com uma técnica especial e que o ruído das engrenagens provocava sono.
Na hora não acreditei muito. Só comprei porque era bonito e estava barato. Mas tive a maior surpresa quando percebi que o relógio realmente me fazia dormir!

Não tenho tempo pra lembranças agora! Corro pra escovar os dentes enquanto tento expulsar a história que ele havia me contado e agora volta com todos os detalhes à minha memória, me atrasando mais ainda pro trabalho!

Qual era mesmo o nome dele? Não lembro! Ele nem tinha uma barraca como os outros feirantes! Estava sentado num barzinho na esquina da feira, com aquele belo relógio de prata na mão e eu nem tinha reparado nele quando entrei pra comprar uma cerveja.

Enxugo o rosto, pego minha bolsa caída no chão ao lado da cama e corro para o elevador, que demora pelo menos uns cinco minutos pra chegar. Saio correndo pela portaria do prédio e percebo que está chovendo torrencialmente. Que droga! Hoje não é mesmo o meu dia! Saio correndo debaixo de chuva.

Poucos metros atrás de mim alguém está chamando uma tal de “Irís”. Deve ter me confundido com alguém, mas eu não estou com tempo pra parar de baixo da chuva e corrigi-lo, por isso apresso mais o passo até o ponto de ônibus. Sento no pequeno banco de metal e começo a remexer a bolsa ensopada, a procura da carteira. Segundos depois, ouço a mesma voz masculina atrás de mim, um tom de voz ressentido:

- Você não vai nem falar comigo, Irís?
Levo um susto e me viro irritada:
- Não sou a Irís! – Depois percebo que o pobre coitado não tem culpa do meu mau humor e acrescento tentando ser mais simpática – desculpe, você deve estar me confundindo com alguém.
- Vai dizer agora que você tem uma irmã gêmea? – Ele responde irritado e um pouco confiante demais para o meu gosto!
- Irmã gêmea? Escuta aqui, cara, me deixa em paz, ta?
- Íris! – Ele senta do meu lado subitamente e pega a mão. – Você está sendo ridícula! Eu não sou nenhum idiota e nem você! Quer parar com essa palhaçada?
- Meu senhor – respiro fundo e sinto que cada palavra sai de minha boca com duas toneladas de desaforos subentendidos. – Eu não sei quem é Íris.

Ele olha pra mim com mais atenção. Uma ligeira desconfiança passa por seus olhos. Percebo que suas mãos quentes ainda estão envolvendo a minha, mas alguma coisa na intensidade com que ele me olha me impede de retirar a mão. Devem ter ser passado apenas uns três segundos que estou encarando este estranho, mas parece uma eternidade!

- Você é tão boba! – Ele sorri, sacudindo levemente a cabeça e se inclina claramente na intenção de me beijar.
Eu recuo e me levanto assustada.
- O que você pensa que está fazendo? – Percebo que minha voz está alterada, com um misto de irritação, susto e... algo mais que não consigo identificar.
- Você jura por Deus que não ta me reconhecendo? – Em seus olhos vejo a mais pura expressão de espanto.
- Sou eu, Edgard!
- Moço, você ta me confundindo. Meu nome é Alice.

Percebo que meu ônibus passa, mas não faço sinal. Agora estou realmente curiosa pra saber o que está acontecendo. O homem na minha frente parece mortalmente divido entre desconfiança e desespero. Resolvo tentar ajudá-lo.

- Você está se sentindo bem? Quer uma água? – ele recusa com a cabeça e eu sorrio pra tentar quebrar a tensão – Nossa! Será que essa Íris é tão parecida assim comigo? Quer dizer, você já ta aqui me olhando a uns cinco minutos e ainda não acredita que eu não sou ela!
- Você não está entendendo! Você é ela! Tenho certeza! – então ele parece ter uma idéia e se vira pra mim outra vez - Você tem um sinal de nascença na planta do pé. Uma pequena cicatriz no joelho esquerdo e... hum... – ele desvia os olhos, enrubescendo – uma tatuagem...

Sinto um súbito frio na boca do estômago e olho pra ele sem acreditar. Sinto medo, minhas pernas ficam ligeiramente trêmulas e eu me sento novamente no banco. Passam-se alguns segundos até que eu formule a pergunta para a qual tenho certeza de que não quero saber a resposta:
- Como você sabe disso tudo sobre mim?
Edgard olha pra mim constrangido. Acho que é muito cavalheiro pra me dar a resposta óbvia. Ele toca de leve no meu ombro:
- Posso te pagar um café?

Ainda me sentindo um pouco zonza, atravesso a rua com aquele desconhecido. Seu braço está em volta do meu ombro de uma forma protetora e eu sinto a chuva cair sobre mim como se não estivesse molhando o meu rosto, mas o rosto de alguma outra pessoa.

Sentamos numa mesa da parte externa da cafeteria que está coberta por um toldo verde. Ele pede dois cafés sem açúcar. Parece que está me esperando falar alguma coisa, mas eu continuo muda, então ele decide começar:

- Eu ainda não entendo como isso pode estar acontecendo, como você pode ter esquecido de tudo!
Me sinto muito cansada pra explicar a ele que não esqueci de nada, que eu sou eu mesma e me chamo Alice desde que nasci. Ele continua:
– Você sofreu algum acidente recentemente? – aceno que não com a cabeça.

– Bom deixa eu pelo menos tentar te fazer lembrar de alguma coisa então! Eu te conheci... quer dizer, conheci a Íris a três meses atrás. Ela havia entrado de penetra na despedida de solteiro do meu melhor amigo, mas ninguém expulsou ela... quer dizer... você... ah! Sei lá! Nós não te expulsamos porque você era muito divertida.
- Ah meu deus! Divertida como?
- Não se preocupe! Você não fez nada demais! Você falava coisas engraçadas, dançava muito bem, era.. é muito bonita e derrotou todo mundo na competição de shots de jagermeister. Bem, todo mundo menos eu, que estava dirigindo e não bebi.

Quando a festa acabou eu me ofereci pra te levar pra casa, porque estava muito tarde e você respondeu que não precisava de baby-sitter. Daí eu te dei meu telefone, caso você precisasse de ajuda e deixei você em paz, mas fui seguindo seu ônibus de longe com o carro, só pra ter certeza de que você ia chegar bem. Sabe... você não tava nada legal... mas por incrível que pareça chegou em casa direitinho. E é por isso que eu sei onde você mora.

- Você não... subiu comigo?
- Não! Quer dizer... Não nesse dia. - ele apóia a cabeça nas duas mãos e solta um longo suspiro – Puxa, eu realmente não acredito que você não lembra de nada!!
- Isso acontece quando você se aproveita de mulheres bêbadas – ouço minha própria voz sair irritada – elas tendem a não se lembrar muito das coisas!
- Não foi nada disso! Você me ligou no dia seguinte e me deu seu endereço. Disse que eu tinha sido muito legal com você na noite anterior e agora você queria me agradecer... Você estava completamente sóbria!! Nós saímos pra dançar, depois fomos andando até a praia, porque você queria ver a lua. Tomamos banho de mar... – ele olha pra mim com tristeza – você foi tão... perfeita!

Sinto-me ligeiramente humilhada pelo “foi”. Se eu ainda sou a mesma pessoa ele devia ter dito “é”... não devia?
- Olha, Edgard... de repente foi um daqueles porres que dura dois ou mais dias sabe? Você não deve ter percebido que eu ainda estava bêbada. Eu sinto muito por não ter ligado pra você depois de uma noite tão “perfeita”, mas é que eu realmente não lembro de nada!
- Não! Você não ta entendendo de novo! Você me ligou sim! Íris, nós estamos namorando... quer dizer... ficando... sei lá como você chama! Há quase três meses!!
- Isso é impossível. Eu não sei que piadinha é essa que você ta fazendo, mas, quer saber? Seja lá o que for que você ta querendo de mim é melhor esquecer. Não vai colar. Meus amigos te conheceriam se a gente estivesse “namorando”. Eu com certeza teria fotos com você, seu número no meu celular e...

Enquanto estou falando ele puxa o celular dele do bolso, dá alguns toques e começa a me mostrar fotos de nós dois juntos. Todas à noite, mas definitivamente em dias diferentes. Mal posso acreditar nos meus olhos! Aquela ali sou eu mesma, mas tão diferente, tão... sei lá... fatal!
- São todas à noite... – consigo dizer em meio à surpresa.

Ele sorri, como quem lembra de algo bom que aconteceu há muitos anos atrás:
- É. Você costumava a brincar que era a Cinderella da madrugada. Que durante o dia você virava abóbora. Nunca atendeu meus telefonemas quando eu ligava de manhã e nunca me deu telefone da sua casa. Eu acabei achando divertido. Você tem esse jeito de fazer as coisas mais loucas do mundo parecerem uma ótima idéia!

Peguei meu telefone na bolsa rapidamente e comecei a procurar o histórico de ligações:
- Não tem nenhuma ligação perdida aqui...
- Ei! Esse não e o seu aparelho!
-Claro que é!
- Não é não! Seu aparelho é daqueles velhos que não têm nem câmera! Você dizia que era besteira gastar dinheiro comprando uma coisa que você iria usar tão pouco quanto um celular!
- Não, meu aparelho é esse aqui. Já tem alguns meses de uso, mas está praticamente novo! Tem câmera, MP3 e tudo o mais que qualquer aparelho de hoje em dia tem.
- Então você deve ter perdido o outro..
- Não perdi! Há 6 meses que não mudo de aparelho.
- Calma não precisa se impacientar! Não esquece que a gente ta só conversando. Tem que ter alguma explicação pra isso tudo.
- Tem sim. Um de nós está ficando maluco.
- Nesse caso a maluca teria que ser você, porque os meus amigos te conhecem.

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Entro no elevador irritada. O Edgard vem logo atrás de mim e teve que parar a porta com a mão pra eu não subir sem ele. Permanecemos em silêncio até chegarmos no meu apartamento. Eu consigo perceber que ele está meio constrangido e bastante aborrecido, mas estou muito irritada pra conversar.
- Acho melhor você ir dormir na sua casa hoje. Estou cansada.
Ele olha em volta da sala, parece meio distraído, o que me irrita mais ainda:
- Estava lembrando daquela história que você contou hoje no bar. Do velho oriental com o relógio.
- Edgard, eu não estou a fim de papo.
- Quando foi que você disse comprou mesmo?
- Sei lá... em fevereiro! Qual a parte de “não estou a fim de papo” você não entendeu hein?

Ele olha pra mim de uma forma estranha, como se estivesse tentando decifrar em que linguagem eu estou falando. Depois solta um suspiro e pergunta:
- Você detestou tanto assim a noite de hoje?
- Do que eu poderia ter gostado? Dos seus amigos me chamando de Íris o tempo todo? Daquela bebida amarga horrorosa?
- Foi a primeira vez que eles saíram com “você”, você! Ainda é tudo muito confuso pra eles!
- Você me chamou de Íris umas duas vezes!! – Explodo.
- Ainda é tudo muito confuso pra mim também. Fazem só dois meses...
- Quer saber? Você ta certo! Isso tudo é uma merda de confusão! Foi uma péssima idéia a gente começar a namorar porque você é um lunático que pensa que eu sou outra pessoa. Então porque você não acaba com essa confusão toda e dá o fora do meu apartamento!!

Abro a porta com um estrondo e fico ao lado dela, esperando ele sair. Estou tremendo de tanta raiva! Não só dele, mas de mim mesma que fui me envolver nessa história que tinha tudo pra acabar em confusão! Estou com raiva porque acho que estou me apaixonando por ele e agora vou me sentir uma merda quando ele for embora. Mas quero que ele vá mesmo assim! Melhor acabar de uma vez por todas com essa palhaçada!

Ele caminha lentamente até mim e abraça minha cintura. Sinto minha raiva abrandar como um chama que de repente é atingida por um jato de água fria.
- Eu não vou a lugar nenhum. – ele fecha a porta – estou apaixonado por você.
- Você está apaixonado pela Íris – resmungo, com uma careta.
- Nós vamos fazer isso dar certo – ele ignora meu comentário – confia em mim. Quando eu estou perto de você eu sei! Tenho certeza de que não quero nenhuma outra pessoa na minha vida.

Ele me abraça mais apertado e eu sinto minha respiração ficar igual a dele. Uma sensação boa de paz me envolve completamente e eu deixo que ele me leve até a cama.
- Vou buscar a garrafa de vinho pra gente. – ele diz, com uma piscadela de olho.

Eu me deito na cama e espero. Ele volta da cozinha com a garrafa e e me serve uma das taças. Bebo um gole e ela me beija. Seu olhos estão com uma expressão estranha. Uma espécie de esperança e... culpa....

Começo a me sentir sonolenta. Ele tira a taça da minha mão e se levanta para colocá-la na mesa de cabeceira. Meus olhos estão pesados... Ouço um barulho de algo caindo no chão e imagino que foi a garrafa. Viro a cabeça preguiçosamente pra ver se ele se cortou, mas percebo que foi o relógio que caiu. Vejo Edgar pisar mais umas duas vezes com força em cima dele:
- O que você está fazendo? – Pergunto, mas minha voz saí baixinha. Estou sentindo tanto sono!
- Fique tranqüila. Ele toca meu ombro de leve. Eu arrumo essa bagunça.

Estou caindo num sono tão profundo que é como se estivesse saindo de dentro de mim mesma. Minha cabeça está flutuando naquele estado gostoso de pré-inconsciência e eu sinto que vou começar a sonhar a qualquer momento. O som ambiente do quarto vai diminuindo, mas antes que eu mergulhe no silêncio absoluto ouço a voz de Edgard:
- Íris! Finalmente descobri o que tinha acontecido! Eu te trouxe de volta! Senti tanto a sua falta.
E então eu ouço minha voz, mas não sou eu que estou falando!
- Muito obrigado... seu idiota!!!
Ouço uma pancada e o som abafado de algo pesado caindo no chão. Sinto um arrepio ao ouvir minha gargalhada alta e... cruel. (Mas eu não estou sorrindo!)

E então o silêncio...

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Diferente

Se pudesse, eu nem tinha aberto os olhos quando acordei naquela manhã.
Pra falar a verdade, eu bem que tentei por um tempo. Levantei da cama com os olhos fechados e, automaticamente procurei tatear meus óculos na mesa de cabeceira... rotina idiota! Ainda sem abrir os olhos, joguei os óculos longe. Ouvi o barulho de algo se chocando contra parede, de vidros se partindo, de algo caindo no chão. Não estou muito certo se essa foi a ordem exata dos acontecimentos, mas quem se importa?

Levantei ainda de olhos fechados e topei com o pé esquerdo no pé da cama, depois dei uma joelhada na porta do armário, que havia ficado aberta na noite passada. Uma cabeçada na porta do quarto, que ainda estava fechada e então percebi a claridade: Eu estava na sala.
Normalmente eu teria ido direto lavar o rosto, mas não naquele dia! Ah, não mesmo!

Mais algumas topadas doloridas pelos móveis e eu cheguei na geladeira, às cegas, escolhi a primeira coisa que veio na minha mão. Pesei que era uma maçã, mas era uma cebola! Ótimo! Eu nunca havia mesmo mordido uma cebola. Não era tão ruim... não tão amargo quanto o gosto daquelas palavras da noite passada...
Comi a cebola até o final. Acho que estava com casca... Tateei uma garrafa, imaginando que tomaria um gole de água, mas era o concentrado de guaraná natural. O gosto intensamente doce da bebida me provocou náuseas imediatas.
Em qualquer outro dia eu teria cuspido na mesmo hora, mas naquela manhã eu continuei bebendo... até que não restasse mais uma gota na garrafa.

Terminei de me arrumar ainda com os olhos fechados. Fui escolhendo as primeiras peças que vinham à minha mão no guarda roupas. Me vesti da melhor maneira que pude, peguei a carteira e a chave que estavam ao lado da porta e saí para o trabalho. Nada de elevador!! Dessa vez eu ia descer os seis andares de escada.
Acho que não foi mesmo uma boa idéia descer escadas de olhos fechados... Os dois primeiros lances até que foram bem, mas depois eu fiquei confiante de mais (esse sempre foi o meu erro mesmo). Um passo em falso e no minuto seguinte eu estava rolando escada abaixo.

Abri os olhos instintivamente no início da queda, mas não pude reconhecer o ângulo da minha visão. Fechei os olhos de novo rapidamente e continuei caindo. Senti um degrau raspar algumas costelas, um outro suportou três pancadas consecutivas de minha perna direita e alguns outros foram se revezando entre meus braços e meu rosto. Cheguei ao final da queda com um sentimento de alívio. Aqueles segundos pareceram durar para sempre, exatamente como os da noite anterior... mas a dor dessa vez não era tão intensa.

Pra ser sincero, eu tenho que reconhecer que a dor física que senti naquele momento foi uma distração. Os minutos que passei caído ao pé daquela escada, sentindo as pontadas agudas de dor no corpo, foram na verdade os mais agradáveis das últimas 12 horas.

Passei pela portaria e cheguei na rua. Agora eu ia ter que abrir os olhos mesmo, mas aquilo já não importava tanto... Manquei até a metade do caminho para o meu carro e desisti. Eu não estava com os óculos e minhas pernas ainda doíam incrivelmente. Melhor pegar um táxi.

Cheguei no escritório e minha secretária, por mais discreta que tentasse parecer,não conseguiu evitar o olhar de surpresa e estranheza que me lançou. Percebi que outros colegas meus me olhavam da mesma forma e procurei no espelho algum motivo para aquilo.
Motivos não faltavam! Pra começar meu cotovelo e meu queixo estavam sangrando, minha camisa estava abotoada muito incorretamente, e a calça que eu estava usando era de um smoking que eu havia usado num casamento da semana passada!
Não pude deixar de rir com a cena. Acenei para eles de maneira casual e entrei na minha sala. Ao lado dos documentos que eu tinha para ler e assinar naquela manhã, estava um porta retrato. Um porta retratos que olhava para mim com seus sorriso angelical e dizia:
" Você é um pobre coitado! Um fracassado miserável".
"Eu sou sim!" - Respondi em voz alta - "Mas isso é tudo culpa sua!"

Peguei o porta retratos e fui até a minha secretária: "Guarde isso no meu cofre."
"Ah... no cofre do banco?"
"Sim! Por acaso eu tenho algum outro cofre?"
"Não senhor." Disse ela, pegando o objeto da minha mão.
"Vá agora. E tome cuidado!"
"Sim senhor... anh... senhor?"
"O que?"
"Está tudo bem?"
"Sim. Está." Respondi, indo em direção à porta de saída.
"O senhor vai sair?"
"Vou, mas não desmarque a reunião."
"Mas... já estão todos aguardando pelo senhor na sala..."
"Deixe eles lá!"

Saí do escritório e comecei a caminhar. Minha intenção era de dobrar em todas as terceiras esquinas para a esquerda, até que meus ferimentos deixassem de doer.

No meio da tarde meu celular começou a tocar. Eu já estava a dois bairros de distância. Em um dia normal eu teria atendido e falado para a minha secretária cancelar meus compromissos, mas não naquela tarde!
Parei numa barraca de cachorro quente e troquei meu celular "smart phone" por um sanduíche e uma lata de refrigerante. Esse foi outro momento bastante agradável do meu dia.

Só comecei a sentir sono realmente dois dias depois do início da minha caminhada. Eu já não fazia a menor idéia de onde estava! O sol estava forte e eu havia chegado à estrada... não tinha mais esquinas. Não haveria um outro caminho a seguir por um bom tempo.
Ela estava certa! Por mais que eu lutasse, sempre acabava chegando a essas situações onde eu era impelido a fazer algo previsível, por mais que eu tentasse pegar as esquerdas, acabava sempre voltando para uma linha reta!

Era mais do que deprimente! Aquela imensa via reta que se estendia a perder de vista na minha frente era desesperadora!

Tive vontade de dobrar aquelas linhas de concreto com os meus próprios braços! Tive vontade de gritar, de xingar, de entrar naquele mato que beirava a estrada e adquirir alguma doença bem incomum! Ser picado por algum inseto raro... qualquer coisa!
Deitei debaixo de uma árvore morta que observava a minha confusão e acordei apenas no dia seguinte. Estava ventando muito!

Os galhos mortos dançavam acima dos meus olhos... A princípio eu achei que fosse apenas de alegria, mas foi então que eu entendi: ERA UM APELO! "Vá!" - dizia a árvore morta - "Olhe pra mim, fiquei plantada aqui por toda a vida e agora é tarde demais! É tarde demais para mim, mas você ainda pode ir!"
"Venha comigo!" - Dizia o vento! "Venha logo!"

Eu levantei ainda confuso e percebi que meu corpo não doía mais. Decidi que atenderia ao apelo dos mortos naquela manhã. Olhei para a árvore seca e me preparei para dizer-lhe adeus, mas nesse momento, desprendeu-se de um galho mais alto, uma folha, pequena: Estava verde! "Leve-me com você!" - Pedia ela.
Eu a coloquei no bolso e segui o meu caminho. A direção da ventania parecia me apressar para um destino que ela já conhecia. Parecia ansiosa que eu chegasse logo. Fui andando o mais rápido que pude.
Segui aquela ventania por dias, semanas, meses. Às vezes ela parava em algum ponto, pra que eu pudesse descansar. Às vezes me dava uns dois ou três dias de folga e então voltava, intensa, guiando-me para seu refúgio desconhecido.

Vários meses já deviam ter se passado (eu já havia esquecido como se mede o tempo). Até que um dia, ao me levar até uma praia, minha "guia" começou a soprar mais forte. O recado era simples: "atire-se ao mar".
Eu hesitei e a brisa pareceu ofendida. Começou a soprar mais forte, furiosa. Eu havia confiado nela até ali, não era justo que desconfiasse agora. Compreendi que não poderia mesmo desapontá-la daquela forma e comecei na nadar.
Depois de um certo tempo, meus músculos começaram a cansar, mas o vento trouxe da praia uma tampa de isopor para mim. Fiquei boiando por várias horas, entregue a vontade máxima daquela brisa suave. Acabei por chegar a um conjunto de corais.

Havia um pequeno veleiro, já bastante danificado, preso entre duas rochas paralelas. Quando eu entrei, percebi que ali havia acontecido um desastre! Eles haviam enfrentado uma tempestade e pelo jeito estavam presos há dias naquele lugar. Comecei a vasculhar o interior da embarcação e encontrei uma mulher caída.
A princípio pensei que estivesse morta, mas ela estava apenas ferida, desmaiada. Cuidei dela como pude e naquela noite tivemos uma outra tempestade.
A maré subiu mais, libertando o barco das rochas e o vento nos levou até uma praia da ilha que estava a pouca distância dali.

Já faz alguns anos que isso aconteceu, mas só hoje eu voltei a velejar pelos mares de minha antiga cidade. Aquela folha verde que eu trouxe comigo da árvore morta nunca morreu. Eu a deixo sempre ao lado do leme, para que veja junto comigo aonde estamos indo.

Alguma coisa na forma como o vento soprou nessa tarde fez com que eu lembrasse de toda essa história e das palavras duras que eu ouvi na noite anterior ao dia em que nasci.
Num dia normal essas lembranças teriam me provocado dor, num dia normal aquelas palavras teriam me feito chorar. Mas não hoje. Não mais.