domingo, 29 de novembro de 2009

Desacato

Ele parou em frente à delegacia e respirou fundo: precisava de fôlego, muito fôlego para aguentar o tempo que fosse nescessário.
1,2,3...
- AAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHH!!!!!
O grito saiu num volume maior do que ele mesmo imaginava que poderia gritar. Isso era bom. Continuou gritando.
A sensação era excelente. Á princípio as pessoas passavam por ele com cara de assustadas, mas depois de cinco minutos, nunguém mais passava por ali. Atravessavam a rua, com medo e seguiam seus caminhos, ou simplemente paravam do outro lado, observando, tentando compreender o que estava acontecendo.

Finalmente um policial saiu apressado de dentro da delegacia:
- Senhor, está tudo bem?
Ele continuou gritando. Era óbvio que não estava tudo bem! Estava tudo terrivelmente errado e ele continuava gritando sua indignação.
- Senhor, peço que pare de gritar. Se o senhor está com algum problema, nós podemos conversar para tentar resolvê-lo.
Não! Ele não tinha a menor intenção de parar. Fez dois segundos de silêncio para recuperar o fôlego, e então, olhando firmemente nos olhos do policial, voltou a gritar. Ainda mais alto.
- Senhor, mais uma vez peço que pare de gritar.Se não parar de gritar agora mesmo, seu ato será considerado como desacato e eu vou ter que detê-lo.
O policial estava ficando irritando. Dava para perceber pelo seu tom de voz e pelo olhar que lançava por trás dos óculos discretos que usava.
Mas ele continuou gritando.
O outro homem, depois de alguns instantes se irritou ainda mais:
- Agora já chega! O senhor está preso. Vamos ver por quanto tempo continua gritando na cela.

Ele foi algemado e levado às pressas para o interior da delegacia. Olhou uma última vez para o aglomerado de pessoas que haviam se juntado em volta para apreciar a cena.
Algumas olhavam desconfiadas, outras sorriam com deboche, outras balançavam suas cabeças em desaprovação. Mas todas, sem excessão estavam incomodas. Seus gritos as pertubavam e isto estava claro em seus olhos.

Foi levado ao delegado e em poucos segundos todo o prédio já estava tomado por seus gritos. Os outros sons de protesto, de injúrias, de máquinas, haviam sido abafados por completo.
- O que está acontecendo aqui?
Perguntou o homem de trás da mesa.
- Este senhor parou na frente da delegacia e começou a gitar. Não consegui convencê-lo a parar nem mesmo sob a ameaça de prisão.
O policial falava alto, esforçando-se para que sua voz não fosse abafada pelo grito grave do novo prisioneiro.
- Muito bem, senhor. Está com algum problema, ou devo presumir que é só mais um engraçadinho que veio aqui perder meu tempo?
- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!
- Humpf! O senhor está sendo preso, compreende isso? Por desacato à autoridade.
- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!
- Preciso do seu nome. O senhor vai ser fichado. Tem direito a fazer uma ligação.
- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!
- Eu já procurei, senhor. ele não tem carteira. Nenhum documento, nada que nos dê uma pista de seu nome, de onde mora, nada!

O delegado, acostumado a passar o dia no meio da agitação e do barulho daquela que era uma das delegacias mais movimentadas da cidade, pareceu surpreendentemente abalado com esse novo ruído.

_ Pois então tire as digitais desse infeliz e jogue no xadrez! Acho que é isso que ele quer!

Quando foi levado para o interior das celas, surpreendeu-se com o odor desagradável do ambiente. Seus gritos, à princípio pareceram divertir os presos, que o receberam com gargalhadas e gritos de ofensas bem humorados.
O policial estava agora intrigado com o sujeito e preferiu colocá-lo numa celas reservada para presos não perigosos.

O homem sentou-se pacientemente num canto da cela, respirou fundo aquele ar fétido e continuou com o seu grito. Percebeu com estranhesa que ainda não se sentia preso, mesmo depois que as celas já haviam se fechado sobre ele a mais de uma hora.

- Senhor...
O carcereiro parou com respeito à porta do delegado.
- O que é?
- Senhor, o homem não pára de gritar! Está irritando os outros presos. Estão todos xingando e batendo nas celas, muito irritados...
- Pois então faça o homem calar a boca, oras!
- Mas, senhor... como eu faço isso?
O policial lançou um olhar significativo para o funcionário:
- Não vai querer agora que eu te ensine o seu trabalho, né?
- Com todo o respeito, senhor. O homen não é criminoso! É um lunãtico! Um louco! Eu não vou bater em louco! Deus me livre!
E fez o sinal da cruz.
O delegado soltou um suspiro exasperado.
- Então deixe o homem gritando lá!
- Senhor... se ele continuar por muito tempo... acho que vai ser espancado.
- Ponha ele numa cela com os "cagões".
- Ele já está lá. Mas os homens estão muito irritados. Estão com dor de cabeça e ameaçam perder a paciência a qualquer momento.
- Mas que inferno! Como se eu já não tivesse problemas suficientes nessa vida! O que você quer que eu faça, homem de Deus?
- Acho que... acho que o senhor deve tirá-lo de lá. Só isso...

O delegado chamou o policial que havia feito a prisão. O carceriro voltou ao seu trabalho.
- Já encontrou a ficha do homem?
- Ainda não, senhor. O senhor sabe como são esses arquivos de digitais. Pode levar dias!
- Me diga, por que diabos você trouxe este louco para dentro da minha delegacia?
O delegado estava irritado e deu grito quase tão alto quanto o do prisioneiro misterioso.
- Ele não parava de gritar, senhor. Bem aqui na frente.
- e você resolve trazê-lo aqui pra dentro! Graaande!! Agora eu não posso entregá-lo pro pinel enquanto não souber o nome do infeliz e você me diz que isso pode levar dias! Tem idéia do quanto isso me aborrece?
- Desculpe, senhor... eu... não sabia o que fazer.
- Pois eu vou te dizer o que fazer: esquece essa porra de arquivo, essa porra de digitais! Pega esse infeliz, esconde ele num camburão e leva pra bem l,onge daqui! Pra qualquer lugar onde ele não consiga voltar!
- Mas...
- Mas o que??????????
- Nada senhor. Vou fazer isso. Pra onde eu o levo?
- Pra casa da sua mãe! Pra puta que o pariu!

O policial saiu da sala assustado e irritado. Era a primeira vez que levava uma bronca daquelas! Agarrou o prisioneiro com fúria nos olhos e o tirou de dentro da cela. Os prisioneiros fizeram uma festa de gritos e depois que os dois saíram, o cárcere ficou em silêncio absoluto. Pela primeira vez em toda a história da delegacia.

- Ora! cale essa boca!
Disse o policial, jogando o homem com violência no camburão.

Mas ele continuava gritando. Sua gargante doía e seu grito já não tinha mais a mesma potência, mas ele fazia sair o mais alto que podia e mesmo algemado naquele camrurão, que começava a se dirigir por lugares escuros para fora da cidade, ele percebeu que não sentia medo!

O policial dirigiu por quase três horas. Sua cabeça latejava de dor e ele por várias vezes sentiu a fúria invadí-lo. Uma vontade enorme de bater o carro contra um muro, de jogar o cambruão de um percipício... qualquer coisa violenta o bastante para destruir tudo!
Finalmente, parou num matagal escuro, próximo a um pequeno lago, já a vários quilometros da cidade. Retirou o homem do camburão o jogou-o no chão enlamaçado. Puxou seu revolver e apontou para a cara do desconhecido:
- Você vai parar de gritar agora, seu merda! Por bem ou por mal!
O homem não parou. o policial sentiu o gatilho coçando em seu dedo. Aquele homem caído, que provavelmente nunca fizera mal a ninguém, que provavelmente era um pobre coitado louco, o fazia sentir mais furioso do que todos os outros criminisos verdadeiros que já havia encontrado em todos os seus anos de profissão.Era estranho e assustador perceber isso!
Mas ele não era um assassino! Não ia matar um homem só por que estava gritando!
Ele agarrou o homem pelo colarinho e disse, olhando em seus olhos, já sentindo sua raiva dar lugar a um outro tipo de sentimento: uma pena quase repeitosa pelo sujeito:
- Escuta aqui! Vá ser maluco em outro lugar, entendeu? Não volte pra lá! Não me cause mais problemas!

Ele virou de costas e afastou-se, em diração ao carro outra vez, deixando o homem caído no chão.
Abriu a porta do camburão e ia entrar, quando ouviu uma voz já quase rouca atrás de si:
- Por que?
A surpresa de ouvir aquele homem que ele já consederava totalmente insano, fazer uma pergunta, num tom de voz racional, quase o fez cair pra trás. Ele segurou na porta e agarrou a arma com medo... de alguma coisa.
- Por que o que? - Perguntou, tentando conter o susto.
- Por que o grito incomoda TANTO?

O policial sentiu um arrepio ao ouvir a intensidade da palavra "tanto". Ele sabia a que "tanto" estava se referindo: aquele homem havia incomodado a todos em volta de si naquele dia. havia feito pessoas de bem assistirem com aprobação um inocente ser preso, havia irritado um delegado que convivia com barulhos muito mais ofensivos a vida inteira, havia feito covardes ladrões de galinha querem espanca-lo, havia silenciado um cárcere cheio de criminosos furiosos e quase havia tornado ele próprio - um policial burocrático - num assassino.
Voltou-se para o homem, tentando imaginar uma resposta para sua pergunta, mas ele já estava dormindo, exausto, com o rosto voltado para o chão.

O policial deu a partida no carro. Não precisava mais responder ao homem, mas a pergunta ainda o incomodava.
A única coisa que o homem havia feito foi usar sua própria garganta livremente, da maneira que queria. Sabe-se lá o porquê. E o por que também não interessava...

Ou interessava?

E de repente ele se lembrou do que havia sentido quando o homem parou de gritar e lhe fez uma pergunta: MEDO.

Era isso que aquele homem tinha causado em todas as pessoas á sua volta naquele dia, com sua aparência respeitável e simples, agindo como um louco!

MEDO!

Era por isso que o motivo importava! As pessoas precisavam saber por que ele estava daquele jeito, por que adimitir que nenhum evento em especial o havia levado aquilo seria também adimitir que qualquer um podia agir da mesma forma. UQe qualquer um podia, em sã consiencia, começar a gritar simplesmente porque tinha vontade.

Essa liberdade exagerada de expressão e sentimentos assustava as pessoas. E essa era a pergunta: "POR QUÊ?"

O policial pensou mais um pouco sobre o assunto, enquanto dirigia a estrada escura de volta pra casa. Abriu a janela, sentindo ele prórpio a vontade de gritar, na solidão escura daquela noite. Ninguém jamais saberia...

E de repente ele percebeu!
O velho policial soltou uma gargalhada gostosa, sentindo uma satisfação que há muitos, muitos anos mesmo, mão esperimentava.

Ele e sua família tiveram um final de semana excelente!

1 comentários:

lisa disse...

Nossa, excelente conto! Imagino uma multidão gritando a sim as portas de um governo, sem movimento, sem armas... Na verdade essa é uma excelente história sobre vozes. Vozes essas que já estão caladas por séculos.

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