Lembro nitidamente do meu tom desafiador e das últimas
palavras que lhes disse quando eles finalmente me capturaram e trouxeram para o
Labirinto:
- Eu nunca esquecerei.
Eles apenas se entreolharam e sorriram. Lembro-me de ter
ouvido um deles comentar em tom debochado enquanto se afastava:
- Todo mundo esquece.
A sentença era simples: “Saia do Labirinto pela porta certa e
sua punição termina”.
Senti um certo orgulho de mim mesmo, porque ao invés de
estar com medo, uma estranha excitação me motivava a ingressar naquilo que eu
começava a encarar como uma aventura.
O Labirinto era totalmente diferente do que eu havia
imaginado quando ouvia os contos quase sussurrados daqueles que clamavam ter
escapado de lá. As paredes eram feitas de pessoas vivas e falantes, com as mais
diversas aparências e nos mais variados estados de humor. Centenas delas! Eram
livres para andar e se movimentar da forma que quisessem, de modo que os
caminhos se modificavam o tempo todo.
E todas elas falavam comigo! Pelo menos umas vinte vezes por
dia alguns daqueles tijolos humanos me dirigiam a palavra, sempre me chamando
por nomes diferentes. Mesmo quando a mesma pessoa falava comigo por uma segunda
vez, já me batizava com um nome ou apelido diferente.
No princípio eu as
ignorava. Depois comecei a tentar convencê-las a me ajudar, então passei a
odiá-las e finalmente comecei a encontrar nelas e em nossas breves e fúteis
conversas um remédio para minha crescente solidão.
Conforme eu havia sido informado, o Labirinto tinha suas
armadilhas: portas que se abriam para salas escuras, onde eu ficava por tempo
indefinido (e indefinível!) e sempre sofria algum tipo de intervenção.
Na primeira dessas portas trocaram minhas roupas. Já na
segunda eu fiquei trancado pelo que imagino ter sido dois dias, apenas ouvindo
centenas de músicas diferentes, dos mais diversos estilos e nacionalidades. Outra
porta me encerrou numa estranha sala de cinema, onde, através da tela, pessoas falavam diretamente comigo por horas, contando detalhes
de toda a sua vida (algumas conhecidas minhas, inclusive).
Essas armadilhas se repetiram incansavelmente durante minha
passagem pelo Labirinto. Trocaram minhas roupas incontáveis vezes, encheram
meus ouvidos com provavelmente todas as músicas do planeta (eu chamava essas
salas de Cubos do Inferno) e me apresentaram com riqueza de detalhes a tantas
pessoas que eu já começava a confundir quais eram as que eu conhecera
pessoalmente.
Eu era encaminhado até a porta que dava para a sala de refeições
com uma escassa frequência e lá me era oferecido um banquete no escuro, onde todos
os alimentos estavam cortados em formatos parecidos e eu não podia discernir o
que estava comendo até que provasse.
Algumas das pessoas que compunham as paredes do Labirinto
pareciam realmente gostar de mim e me davam apelidos simpáticos, enquanto
outras me xingavam quando eu passava por elas .
Esses pequenos “relacionamentos”, como era de se esperar,
com o tempo evoluíram em intensidade. Alguns dos “tijolos amigáveis” passaram a
tentar me seduzir e alguns foram até correspondidos.
Enquanto isso, alguns de
meus antipatizantes já me agrediam abertamente.
Diante da ausência de
instruções sobre como proceder com relação às paredes vivas, eu reagia de acordo
com meu instinto ou estado de humor. Por várias vezes retribuí as agressões e
parti pra briga, outros dias eu apenas ignorava.
Um certo dia, uma
moça me deu um tapa nas costas logo após eu ter passado por ela. Eu virei e
mandei ela ir se fuder. Ela caiu na gargalhada e a partir de então nos tornamos
amigos.
Não que ela jamais tenha me dito seu nome, ou tenha parado de me chamar
por apelidos diferentes como todos os outros, mas eu sabia que havíamos ficado
amigos porque ela passou a me trazer cerveja.
E foi ela quem veio me parabenizar quando eu cheguei ao
final do Labirinto.
Durante todos os anos que vaguei por entre aquelas paredes
de gente, eu abria a maioria das portas que encontrava, mesmo sabendo que
poderiam conter armadilhas, porque existia uma pequena possibilidade de eu ter
chegado ao final do Labirinto e aquela ser “a porta certa”.
Quando finalmente encontrei o tão esperado final tive
vontade de socar minha própria cara! Aquele lugar era tão diferente de todos os
outros que eu não sei como pude ter me confundido por tantos anos!
Restava apenas uma tarefa e a que descobri ser a mais cruel:
“Sair pela porta certa.”
Eu me encontrava em uma espécie de clareira e à minha frente
haviam mais de quinze portas diferentes. Todas elas com a foto de uma versão de
mim mesmo enquanto estive ali dentro. Ao lado de cada porta havia um pequeno dossiê,
contando uma versão diferente de mim:
“Alan Vieira, 28 anos, gosta de música clássica e morangos.
Amigo de Daniele e Gustavo. Qualidade: criativo. Defeito: agressivo.”
“Diego Souza, 30 anos, gosta de rock e pizza. Amigo de
Luciana e Carlos Henrique. Qualidade: inteligente. Defeito: preguiçoso.”
“Marcelo Gramado, 32 anos, gosta de samba e berinjela. Amigo
de Oscar e Thiago. Qualidade: integridade. Defeito: pessimismo.”
A medida que eu ia passando em frente à porta e lendo esses
perfis, uma inquietação desesperada se abateu sobre mim. Ao final da ultima
leitura, eu simplesmente não conseguia decidir qual daquelas versões correspondia
exatamente à pessoa que eu era quando cheguei àquele lugar.
Foi apenas nesse
momento que percebi que estava perdido.
Fiquei sentando, olhando perplexo para aquelas portas
durante uns três dias. Quanto mais eu tentava lembrar de mim, mais eu senti que
perdia ou inventava algum detalhe.
Minha amiga vinha me trazer cerveja a noite e me fazia
companhia. Ela também não tinha certeza de qual das portas estava certa e não
sabia como me ajudar.
Foi apenas no terceiro dia que ela, observando minha aflição,
olhou em meus olhos e propôs:
- Sabe... você pode ficar... não é tão ruim ser um de nós.
Aquela pareceu a melhor proposta que havia ouvido na vida e
naquele momento eu sabia o que tinha que fazer:
Levantei e lhe disse adeus.
Segui com passos firmes em direção à porta certa. Não aquela
que eu lembrava estar correta, mas a que me descrevia exatamente naquele momento.
*******
Após muitas noites de insonia resolvi que seria uma perda de tempo passar o
resto da vida me questionando se fiz a escolha certa e passei a viver,
simplesmente, sem questionar esse recomeço.
Nem tudo deu certo, nem tudo deu errado e nos vinte anos que
se passaram desde de que deixei o Labirinto cheguei à conclusão que a vida é só
a vida mesmo. E é assim pra todo mundo. E tá tudo bem.
Mas hoje, quando deixei aquela menina com seu olhar
desafiador e sua promessa de que sempre se lembraria, senti uma sensação
ruim....
E pela primeira vez, em muito tempo, sinto vontade de abrir
novas portas.
3 comentários:
Seus contos tem a péssima mania de me retirarem do conforto da minha parede. E devo dizer que desde que eu li A Escolha dos Três, este lance de portas vem mexendo com meu subconsciente.
Ola Monstrinha! To precisando de novas portas... Olho pra minhas roupas e tenho a impressão de que não minhas...
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