quinta-feira, 7 de julho de 2011

Tela Negra

Ele já está me observando há pelos menos quarenta minutos. Sentado sozinho numa mesa no canto mais escuro do bar, ele nem sequer tocou no copo de whisky à sua frente. Me encara como se não houvesse mais nada ou ninguém a sua volta, como se eu fosse a única razão pra ele estar ali.

Esse comportamento suspeito estranhamente não me assusta. De todas as coisas que eu não consigo lembrar, sinto que ele é a mais importante. E ele parece saber disso também. Me olha como se nunca fosse perdoar o fato de eu ter esquecido quem ele é.

Todo mundo tem sido muito paciente comigo. Eles tentam me deixar à vontade e seus olhares piedosos parecem reafirmar a cada segundo que nada disso é culpa minha: o acidente, a perda da memória, tantas pessoas feridas e magoadas. Para eles eu sou a única vítima, e talvez eu seja mesmo. Mas esse estranho no fundo do bar me acusa com seus olhos, parece jogar sobre mim o peso de todas as infelicidades e injustiças dos últimos meses. E esse peso cai sobre os meus ombros como uma onda de alívio!

Meus amigos já pediram a conta e estão se levantando pra ir embora. Eu resolvo ficar. Nenhum deles protesta, em parte porque se acostumaram a nunca me contrariar, como se eu fosse uma frágil taça de cristal pronta para me estilhaçar a qualquer tom de voz mais alterado. Mas sei que eles também mal podem esperar pra se ver livres de minha companhia. Esse relacionamento de palavras não ditas e emoções reprimidas se tornou um fardo tão insuportável pra mim quanto pra eles.

Espero até que eles saiam, pego minha taça de vinho que ainda está pela metade e me dirijo com passos decididos até a mesa daquele estranho. Sento-me em silêncio na cadeira em frente a ele e tomo um gole de minha bebida.

Ele continua me encarando em silêncio por um tempo. Um silêncio pesado e cheio de cheio de eletricidade. Acho que vi uma pontada de raiva em seus olhos, mas talvez seja só minha imaginação. De qualquer forma é a primeira vez que me sinto realmente viva desde o acidente.

Estendo a mão para tomar outro gole do meu vinho, mas ele me interrompe. Sua mão pesada segura braço com um movimento brusco, derramando o resto do meu vinho na mesa. Ele não se importa com a bagunça. Nem eu.

- O que você está fazendo? – Ele pergunta. Sua voz me soa familiar, quente, feroz e dolorida.

- Não sei. – Respondo sinceramente.

- Devia ter ido embora com seus amigos. – Ele pronuncia essa última palavra com um rancor indisfarçável.

- Você me odeia.

- Sim! – ele confirma quase com um rugido de emoção.

Ficamos em silêncio. Não me sinto ameaçada ou intimidada. Talvez apenas um pouco triste.

Ele solta um longo suspiro e balança a cabeça lentamente:

- Não.

- Mas você não consegue me perdoar.

- Eu jamais teria esquecido você! Nunca! – Ele torna a me encarar. Seus olhos faíscam como um mar de acusações.

- Mas não é minha culpa...

- É SIM! – Ele grita, socando a mesa à nossa frente. As poucas pessoas ainda no bar se viram para nos olhar, sobressaltadas.

Eu me levanto e dou a volta na mesa, parando de pé ao lado dele. Seguro sua mão, que ainda está contraída com o soco e faço um discreto carinho em seu punho:

- Vem. Vamos sair daqui.

Ele se levanta, obediente. Sinto um calor quente de felicidade quando sua mão envolve a minha.

Caminhamos de mãos dadas em silencio. A noite sopra uma brisa gelada e a maioria dos postes não estão funcionando nessa parte pouco privilegiada da cidade. A rua está praticamente deserta; parece que todo mundo conseguiu encontrar um abrigo para o frio e escuridão dessa madrugada. Somos os únicos que não podemos nos abrigar, porque o inverno parece estar dentro de nós mesmos.

- Me fala sobre você – Peço, sem ter certeza de quero saber realmente.

- Não.

- Por que não?

- Você já sabe tudo a meu respeito. Eu não posso e nem quero passar por essa fase de apresentações outra vez.

- Então me fala sobre nós dois.

- Me fala você.

- Mas eu não sei! – Respondo, sentindo-me irritada e frustrada – Será que você não vê que estou tentando? Mas é inútil! Eu não lembro de absolutamente nada!

- Dane-se a merda desse passado então! –Ele pára de andar e me segura pelos ombros, me sacudindo com força – Foda-se a sua memória! Foda-se o que você lembra ou deixa de lembrar! Finge que nada nunca aconteceu! Você sempre foi boa nisso mesmo!

- Mas eu não quero fingir! Eu só estou tentando juntar os pedaços desse quebra-cabeça gigante que se tornou a minha vida.

- Pois não conte comigo pra isso! Não sou igual aos seus amiguinhos covardes! Eu me recuso a ser mais uma peça inanimada que você tenta encaixar na bagunça da sua própria cabeça. Eu tenho visto como eles se comportam perto de você: desesperados pra caber em qualquer situação que você os colocar. Eles renunciam a própria personalidade quando estão perto de você, só pra você não se sentir excluída, já que é a única que realmente não tem uma.

Antes que possa perceber o que estou fazendo sinto minha mão atingir o rosto dele, com força. Mal consigo respirar de tanta raiva. Ele fica surpreso com minha reação e olha pra mim, como se estivesse me vendo pela primeira vez:

- Então você ainda está aí dentro? – Ele pergunta em tom de provocação – Não é apenas a cabeça oca que vem fingindo ser nesses últimos meses?

- Cala essa boca!

- Senão o que? Você vai me bater de novo?

- Não! – Respondo confusa – Mas vou embora.

- E o que te faz pensar que eu me importo?

- Eu sei que você se importa!

- Sabe é? – Ele pergunta em tom desafiador – O que você acha que sabe sobre mim? Pensei que você não se lembrasse de nada.

- Eu não lembro, mas sei. Sei que você não consegue tirar os olhos de mim quando estou por perto. Sei que você está tão magoado pelo meu afastamento que isso te deixa enraivecido. Sei que o toque da minha mão consegue te acalmar...

Ele desvia o olhar. Parece estar lutando contra suas próprias emoções. Eu seguro uma de suas mãos entre as minhas e sinto seus músculos relaxarem. Uma suave onda de calor parece se alternar entre nós dois.

- Eu sei que você está frustrado porque pensa que perdemos tudo o que passou. Mas ainda temos...

Eu me aproximo e toco seus lábios levemente com os meus. Sinto meu coração disparar como se um tornado de chamas tomasse conta do meu corpo. Meus dedos ficam dormentes enquanto tudo à nossa volta parece mergulhar numa luminosidade púrpura.

- isso. – completo a frase, com um suspiro de satisfação.

Ele acaricia meu rosto com a ponta dos dedos, com um olhar de alegria e dúvida:

- Eu só me pergunto se o que nos resta é suficiente.

- É tudo o que precisamos. – Respondo, sentindo-me mais confiante a cada segundo. – Temos muito tempo pela frente para criarmos novas memórias.

Ele sorri e me abraça. O vento frio assobia em nossos ouvidos, arrastando folhas secas em pequenos redemoinhos pelo chão. A escuridão à nossa volta agora é quase total, mas eu mantenho os olhos abertos pra registrar cada pedaço dessa primeira memória que pretendo levar para o resto da vida.

4 comentários:

Anônimo disse...

uau!ví até o fim,preciso dizer mais oq?

Milene Lima disse...

Então... Tem de tudo na blogosfera, né? Você bem sabe... Tem texto chato, massante, que a gente até lê inteiro rezando pra que acabe logo, tem aqueles que desistimos na primeira frase.

O seu, menina... É incrível! Eu quero mais. Tem mais???

Beijo!

Fábio François Fonseca disse...

Será aquela mesma moça com um bilhete na carteira, com instruções para o caso de amnésia? Tava curioso pra saber o que era dela (antes e depois).

É Comigo??? disse...

O passado realmente é um opressor na maioria dos casos, e nos leva a viver o passado como presente e futuro, mas sua personagem conseguiu tranpor esse círculo vicioso e se recriou!Parabéns guria ficou muito bom!

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