terça-feira, 19 de outubro de 2010

Camera e destruição

Assim que o dia amanheceu eu comecei a fotografar tudo.
Apesar de ter passado a noite em claro, procurando em cada centímetro do meu travesseiro um abrigo seguro contra a insônia, eu resolvi esperar o dia clarear para começar a fazer a fotos. Queria fotografar tudo com luz natural.

Comecei pela minha cama. Desarrumada mesmo, com o lençol ainda caído no chão (minha mãe teria reclamado o resto da tarde se tivesse visto). Fotografei os detalhes das flores desenhadas na fronha, o pé descascado da cama, a parte do colchão que aparecia sob o lençol revirado.
Girei a câmera pelo quarto, registrando as paredes desbotadas, o espelho que eu nunca consulto, a estante de livros, o armário caoticamente desorganizado... Nesse momento tive uma ideia! Comecei a vestir todas as minhas roupas! Uma por uma eu experimentava, fotografava-me com ela frente ao espelho e depois despia-me para provar outra.
Quando terminei de fotografar a última peça já estava no ínicio da tarde.

Fui à cozinha, mas ao invés de preparar o almoço eu continuei a fotografar. Panelas, talheres, copos, pratos. O fogão novo e a geladeira velha, quase vazia (fotografei a garrafa vinho pela metade e a travessa de arroz azedo que ainda estavam lá dentro).

A sala me rendeu as melhores fotos do dia: a TV que eu não ligava a anos, o telefone que eu fingia não escutar quando tocava, o computador que com sua imponente eficiência me perguntava porque eu ainda não o havia ligado àquela hora da tarde. A mesa onde eu nunca sentava pra fazer refeições e as cadeiras embaixo dela, suspirando por visitas que nunca chegavam, ou que quando apareciam preferiam outros comodos da casa...
Dediquei uns bons quinze minutos a registrar as janelas. A cortina já estava velha e os vidros embaçados, mas a vista que essas janelas proporcionavam sempre havia me encantado, especialmente nesta época do ano, quando as árvores estavam cheias de flores lilases.

Bati algumas fotos no banheiro, apenas para não passar em branco. A banheira que caíra em desuso por falta de tempo, o aquecedor que sempre desligava sozinho nos meus banhos mais longos, para me fazer lembrar, com uma ducha de água fria, que os momentos de relaxar são sempre curtos e seguidos de algum tipo de tensão física ou psicológica (ou ambas). Reuní os frascos quase vazios de cremes e cosméticos numa foto só.

Depois de a casa inteira registrada, cada pedaço de minha vida documentado e armazenado seguramente no cartão de memória, inicei a segunda parte do dia: a superação.
Tudo que minhas mãos não puderam quebrar, usei uma grande tesoura para rasgar ou cortar, e, no caso das paredes e janelas, um velho balde com tinta diluída para encerrar todos os espaços em branco.
Foi uma destruição pacífica e, na medida do possível, silenciosa. Não havia fúria em meus olhos, ou violência em minhas mãos. Aquele era penas um processo de deixar pra trás aquilo que não correspondia mais à minha personalidade. Era hora de tudo aquilo que já era passado em minha história sair também do presente em minha vida.
Eu não cabia mais naquela casa e não era mais aquelas roupas. Não poderia suportar outra noite de insonia naquela cama ou outro interminável diálogo com meu travesseiro.

Meu ursinho de pelúcia ficou intacto. Afinal, não deixa pra tras os seres amados (quando estes se mostram dispostos a nos acompanhar).
Também poupei os livros, porque esses estavam irremediavelmente dentro de mim, os tijolos que construíram meu caráter (mesmo que as vezes eu não me agrade muito de suas cores). Armazenei todos em uma caixa para doação.

Quando a noite chegou tudo aquilo que eu era cabia dentro de uma mochila: o Kuty, alguns albuns de retrato, minha câmera e meu HD. Resolvi passar ali, na presença e meu passado, uma última noite de reflexão, mas pra minha surpresa, adormeci nos primeiros minutos e só acordei com os raios de sol da manhã seguinte.

Abri a porta pela última vez e saí para encontrar o presente.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Super Hero 2010

Um dia ela olhou para uma folha de papel e sentiu que todo o seu poder havia se esgotado. Não que ela jamais tivesse acreditado muito nele, mas gostava de saber que o tinha, gostava de como as pessoas a adimiravam por causa desse poder. Essa era sua principal característica e agora, sem ele, sentia-se sem identidade, indigente, uma folha em branco mais vazia do que aquela que estava à sua frente, porém muito menos útil.

Estaria mentindo se dissesse que esta mudança chegou de repente. Há muito tempo ela vinha percebendo uma diminuição de suas forças, vinha estranhando algumas mudanças, vinha olhando no espelho e sentindo alguma dificuldade en se reconhecer.A verdade é que ela permitiu que essa mudança ocorresse. O poder que tinha lhe trazia uma agonia que não lhe deixava dormir, uma responsabilidade que mal podia suportar, uma autoridade que jamais buscara ter. Uma dor constante.

No principio, percebia com um certo alívio os sinais de mudança e sua passiva omissão funcionou melhor do que uma ação drástica teria funcionado para o sucesso deste processo de enfraquecimento. Se tivesse simplemente decidido eliminar seus poderes do dia pra noite, esta transformação repentina ainda conservaria traços de sua verdadeira personalidade por muito tempo, talvez tempo suficiente para que ela mudasse de ideia e se reecontrasse. Porém, essa alteração gradual e quase imperceptível levara tudo embora consigo. Fazia anos que ela sentira-se inteira pela última vez, e mesmo com todos os esforços não conseguia mais se lembrar como era aquela pessoa. estava perdida para sempre, além de qualquer restauração.

Restava agora se reinventar.

A pergunta principal agora era: em quê se transformaria? Não gostava dos sinais que sua nova tendência revelava. A pessoa que ela estava mais próxima de se tornar não lhe agradava em nada (ou quase nada). Por outro lado, seu ideal de transformação estava tão distante que parecia quase inatingivel. Era uma folha em branco, e em teoria poderia se "pintar" com qualquer cor, mas na prática, sua aquarela só possuia cores sombrias e seus pincéis estavam todos endurecidos.

Ela olhou para o papel e respirou profundamente: não podia se permitir arrepender pela eliminação de seus poderes. Reconhecer que havia cometido tão grande erro seria doloroso demais. Seria desesperador. Especialmente porque agora constatava que não havia caminho de volta.

O melhor a fazer era apegar-se a sensação de alívio e leveza que a ausencia das responsabilidades lhe trazia (mesmo que no fundo issa leveza lhe parecesse um pouco fútil). Era melhor considerar-se livre do que perdida, uma folha em branco do que uma folha desbotada. Era melhor escolher ser feliz e vestir-se de esperança para o que o futuro viria lhe trazer, agora que não podia mais se amparar em seu passado (que passado?).

Tornou a encarar o papel em sua frente e com um movimento brusco amassou-o e jogou numa lata de lixo. Depois, com um sorriso de alívio, tocou Juliette and the Licks no MP3 e abriu uma garrafa de Syrah.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Meu Suspiro Particular

"SE EU SOFRER AMNÉSIA, NÃO TENTE ME AJUDAR! NÃO GOSTEI, NÃO FOI BOM, E EU NÃO QUERO SABER DA MINHA VIDA! GRATA."
Este era o conteúdo do único papel que aquela maluca trazia na carteira, (além, é claro, do pouquíssimo dinheiro, provavelmente para a passagem - R$1.40). Estava cuidadosamente plastificado, como um documento.
É claro que não me importava o estado daquele maldito bilhete (ou seja lá o que fosse), porque eu estava desesperado! Com certeza o meu vôo já era! E tudo por causa de uma ultrapassagem no sinal vermelho...
Pode dizer, vai: "Bem feito! Quem manda desrespeitar as leis do trânsito?" Mas eu já estava saindo do país! E depois, atire a primeira pedra quem nunca ignorou um semáforozinho numa rua pouco movimentada...
Fala sério, ninguém imagina que um acidente vai acontecer justamente com você, justamente nesse dia, por uma bobagem dessa...
Mas aconteceu.
Ela acordou no hospital, toda dolorida: tinha batido a cabeça no asfalto com a queda (tá bom, eu estava indo muito rápido. Reconheço).
Ficara inconsciente por exatamente três horas e quarenta e oito minutos. Durante esse tempo eu não desgrudei os olhos do leito um minuto sequer e quando ela acordou, eu quase gritei de tanto alívio.

Foi aí que veio o choque: ela não lembrava de nada!
Nem seu nome, nem de seus pais, nem do que estava fazendo na rua em que a atropelei. Entreguei a ela o tal bilhete e para minha total surpresa, ela não se desesperou, muito pelo contrário: abriu um sorriso e disse com a voz mais calma do mundo:
- Que coisa engraçada.... legal!

Aí eu não agüentei. Meus nervos já estavam em frangalhos por causa do susto, da perda domeu compromisso, do sentimento de culpa...
Quando ela olhou para mim, com a cara mais inocente do mundo e disse que aquilo tudo era "legal", eu quase tive um troço!
- Engraçado? Legal? Isso pode ser grave, pode ser pra sempre! Vamos, faça um esforço. Eu imploro! Tente se lembrar de alguém a quem eu possa chamar e avisar o que aconteceu, e onde você está.Deve ter alguém muito preocupado com você nesse exato momento.
- De jeito nenhum! Se eu não queria me lembrar, deve ser perigoso, ou no mínimo, muito chato! Sera que você não vê? Essa é uma oportunidade única de ser totalmente livre! De vivver sem nenhum tipo de trauma, de medo, sem nenhuma decepção do passado... Eu não quero lembrar de quem eu era. Quero ser quem eu sou agora. Aliás, se você me conhece de algum lugar, faça o favor de sumir daqui! Me deixa curtir esse momento especial.
- Sumir daqui? Eu não te conheço. Fui eu que te atropelei, eu não posso ir embora! Você é minha responsabilidade! Entende agora? Se alguma coisa te acontecer, eu posso até ser preso!
- Olha, não se preocupe, eu vou ficar bem. Pode ir...
- Tá louca? Você quer mesmo esquecer toda a sua vida, perder tudo o que já viveu até aqui?
- Você é muito dramático! - Disse ela, olhando em um pequeno espelho que estava ao lado de sua cama - Eu pareço muito jovem, posso viver um monte de coisas ainda! Pode ir!

Mas eu não conseguia ir embora.
Vocês acreditam em amor a primeira vista? Na verdade nem eu. O que senti por aquela mulher louca foi uma paixão fulminante!
Por sua causa eu estava a mais de três horas num quarto de hospital e perdera um vôo que me custou vários dólares, além de um ótimo emprego no exetrior.
Tive vontade de gritar com ela, de apertar-lhe o pescoço, de falar alguns desaforos...
Mas principalmente, tive vontade de tomá-la em meus braços e beijar sua boca, até que ambos caíssemos, sem fôlego.
É claro que não demonstrei esses desejos.
Dois dias depois ela recebeu alta (isso por que me fez jurar que eu não contaria ao médico sobre a sua falta de memória).
Levei um amigo que se passou por amigo dela e confirmou que seus pais estavam viajando.
Ele levou até os documentos, para que os médicos pudessem registrar a "paciente Karen Araújo" nos arquivos. Eu sei, eu sei que isso foi crime, mas os homens apaixonados são facilmente manipulados. Além do mais, uma pessoa como ela consegue sempre o que quer. Vive sempre tão longe da realidade que as impossibilidades do mundo real lhe são desconhecidas e por isso mesmo, indiferentes.
Depois das formalidades legais, eu a coloquei no carro. Embora não fizesse a mínima idéia de para onde iria levá-la.

-Estou apaixonada!

Soltou essa frase com um suspiro, com o mesmo tom de voz que usaria para dizer "estou com sono". Essa afirmação cortou o silêncio de forma tão brusca, que por pouco não me acontece outro acidente de trânsito.
- O quê? Por quem? Por mim? - Perguntei, esperançoso.
- É claro que não, eu nem te conheço!
- No momento você não conhece ninguém, lembra? - Respondi, meu carrancudo.
-Mas eu não preciso conhecer para me apaixonar. Eu sinto que estou apaixonada. Essa pessoa existe, e vai me encontrar e me arrebatar! É inevitável que eu me apaixone por ela.
- Se você não precisa conhecer para se apaixonar, pode muito bem estar apaixonada por mim.
- Pode ser...
Ela olhou para mim, me analizou de cima abaixo e depois concluiu com uma careta muito pouco lisonjeira:
- Mas acho difícil.
- Por quê?
- Porque se eu estivesse apaixonada por você, eu saberia.

Aquela conversa estava me deixando doente! Ou ela era louca, ou estava querendo me enlouquecer.
Engoli seco, não queria demonstrar o que eu estava sentindo para não assustá-la. Estávamos passando pelo Alto da Boa Vista, próximo ao lugar onde havia acontecido o acidente.
Ela não lembrava de nada, olhava encantada para aquele caminho, como se nunca o tivesse visto antes.
Eu fiquei com um pouco de inveja. Era como se ela fosse turista numa cidade em que provavelmente morava a muito tempo! E ser turista no Rio de Janeiro não é pouca coisa:
Poder olhar para todas essas belezas naturais como se fosse a primeira vez! Não sentir o mesmo tédio ao passar na Presidente Vargas, não passar com impaciente indiferença pela Bahia de Guanabara, não sentir a mesma monotonia que o hábito imprimiu em cada esquina dessa Cidade Maravilhosa...
Comecei a entender porque alguém poderia sentir-se privilegiado com uma amnesia total.

Ainda me lembro de cada detalhe daquele dia.
Fazia duas semanas que ela estava em minha casa. Eu não agüentava mais aquele rosto, aqueles olhos, aquele sorriso... a cada dia o meu desejo aumentava.
Se a paixão fosse uma planta, a indiferença do outro com certeza, seria o fertilizante.
Ela continuava apaixonada pelo tal alguém misterioso e olhava pra mim como se eu fosse seu melhor amigo. E parecia completamente feliz.

Estávamos em casa quando o temporal começou.
Imediatamente ela foi para o quintal e começou a dançar, brincando na chuva como se tivesse cinco anos de idade.
- Vem! Tá uma delícia!
Ela estava me provocando! Não dava pra aguentar!
Eu caminhei até ela e a abracei. Ela ficou suspresa, mas não reclamou.
Nem sei quanto tempo ficamos nos beijando debaixo daquela chuva.

Sabe, a paixão fica um tempo no seu coração, mas o estrago acontece quando ela sobe para a sua mente.
Essa é a diferença entre paixão e amor: O amor fica no coração, mas o seu raciocínio está livre para dizer: "cuidado com essa atitude", "não se esqueça daquele defeito".
Mas quando a paixão entra, ela toma conta de tudo, ela fica no seu pensamento e no seu corpo, te controlando. Não dá mais pra ver os perigos, as desvantagens...tudo o que você faz é desejar.
Os dias que se seguiram foram os mais loucos de toda a minha vida.
"Ela" não permitia que eu lhe chamasse por nenhum nome. Dizia que ainda não tinha escolhido algum que lhe agradasse.
"Ela" tinha uma intensidade que me esgotava, e ao mesmo tempo me deixava cada vez mais envolvido. Tinha uma ânsia de viver tudo, de ir à todos os lugares, assistir todos os filmes, dançar todas as músicas, amar todas as noites!
Eu chegava ao fim da noite exausto, mas sentindo uma alegria tão eufórica, tão deseprada, que me fazia acreditar que aquilo tudo valia a pena.

E foi então, que, como uma tsunami que se chega sem avisos à uma praia paradisíaca, aquele dia terrível chegou e arrastou tudo:
Ela abriu as cortinas para me acordar. Eu não sabia quem brilhava mais: ela, ou o raio de sol que invadiu meu quarto.
- Acorda, eu preciso falar com você. Estou indo embora!
- Embora? Pra onde? Você recuperou a memória?
- Não, fala sério! Mas eu preciso encontrá-lo!
- Quem? - Sei lá! Mas não é você. Descobri isso essa noite!
- Do que você está falando? É claro que esse alguém sou eu! Nós somos perfeitos juntos!
- Eu também gosto muito de você... essas semanas foram um delícia, mas... não é você, me desculpe. A culpa não é minha. É do destino, que me fez para outra pessoa.
- Você está louca! Não sabe o que está dizendo...Você não pode ir!
- Eu preciso. Esta é a minha chance de ser feliz.
- Não sabe o que está dizendo, está doente! Não sairá dessa casa!

Ao dizer isso, corri até a porta do apartamento e tranquei. Estava completamente transtornado! Não me importava se ela era feliz, queria que ficasse comigo. Eu precisava dela.
Isso a deixou revoltada! Gritou esbravejou, disse que estava decepcionada comigo, que iria embora de qualquer forma.
Aí começou a quebrar tudo. Queria me forçar a abrir a porta e quebrou vasos de planta, a TV, o som, o vídeo.
Estava tudo esparramado pelo chão, mas eu não me importava, contanto que ela ficasse comigo.

Resolvi sair e dar uma volta, achei que ela acabaria se acalmando. Comprei flores, chocolate, um urso gigante de pelúcia... estava resolvido a conquistá-la. (Tá legal, eu estava maluco).
Quando eu voltei, a porta estava quebrada. Ela se fora, para sempre.

Primeiro veio a raiva. Gritei e xinguei até que não tivesse mais forças.
Depois, o desespero. Eu adimito, chorei muito. Fiquei deitado naquele chão, cheio de cacos, de lixo, de sonhos. A paixão estava me torturando. É terrivelmente solitário estar apaixonado! Fiquei uma semana "desligado".
Comi pouquíssimo, não fui ao trabalho, minha vida estava parada.
Não há nada que corrompa (ou traga á tona) com mais facilidade o caráter de uma pessoa do que a paixão. Em menos de um mês eu havia sido cúmplice de falsidade ideológica, menti, mantive um cárcere privado e quase a agredi.
Que louco!
Algumas pessoas pensam que a paixão acaba, não é verdade, ela simplesmente muda-se mais uma vez de lugar e vai para a memória. De lá não sai nunca mais.
Já fazem sete anos que tudo isso aconteceu.
Eu me casei, amo muito minha esposa, com certeza não a trocaria por ninguém neste mundo, mas toda vez que penso nessa história, consigo lembrar de cada sensação, de cada calafrio.

Provavelmente ela encontrou a sua paixão (é inevitável passar por essa vida sem encontrá-la), mas não acho que estivesse apaixonada quando foi embora.
Era uma sonhadora, pessoas assim já nascem sentindo e esperando por isso, está na alma, nem amnésia pode apagar.
A paixão não cria relacionamentos imortais, cria pessoas eternamente jovens e atraentes, não quer unir vidas sob um teto, mas em torno de uma data, de um local, de uma memória... de um suspiro totalmente particular.

Saudades e algo mais.

Já haviam 206 dias que ela tinha partido (ou seriam apenas 2 meses?).
Não importa! Desde que ela se fora o tempo perdera completamente a lógica. Algumas vezes ele sentia um aperto no peito que parecia durar horas, mas que na vedade não passava apenas de um breve minuto.
Outras vezes ele sonhava com ela, pensando estar apenas tirando um cochilo, e quando via, tinha dormido dias inteiros!

Com ela se fora toda a lógica, toda a simetria, toda a compreensão que ele fazia do mundo.
Não sabia mais a diferença entre silêncio e barulho, não percebia as mudanças de temperatura, não distinguia mais as cores...
Seu mundo acontecia agora apenas em seus pensamentos, ou melhor, em suas lembranças. Todas as pessoas tinham o rosto dela. O silêncio estava cheio da sua voz, o frio era intenso a qualquer hora do dia ou da noite, e as cores... meu deus!
Era como se ele enxergasse tudo através de uma lente. Não existia mais vermelho, azul, branco, preto... era tudo verde! Verde como os olhos dela.

Só uma coisa ele não se atrevia a lembrar: seu sorriso!
Pensar naqueles lábos macios e rosados se abrindo com um ruído doce, moldando a expressão mais bela que ele já tinha visto na vida... não!
Lembrar daquilo provocava uma dor mais vazia que a morte, um desespero mais sufocante que as profundezas de um mar gelado.
Essa era uma imagem que ele definitivamente precisaria esquecer.

Olhou para as paredes vazias do quarto... elas funcionavam como uma esoécie de caixa acústica, prendendo para sempre o som daquelas últimas palavras.
A mesma voz doce, embragada pelas lágrimas, reverberava de uma parede para a outra, encerrada naquela órbita infinita: "Eu tenho que ir agora. Se cuida!"

Ele estava enlouquecendo! Precisava fugir! Precisava parar de pensar!
Correu na direção da porta e tentou abrir, mas não conseguiu girar a maçaneta: sair daquele quarto significaria mudar de ambiente, seguir em frente.
Tudo o que acontecera ali dentro deixaria de ser o presente para se transformar em passado. Ele não podia suportar um presente sem ela!

Deitou no chão, encostado à porta, desorientado.
Precisava ficar ali, naquele lugar, naquele momento, até que...
Sentiu o torpor do desespero envolvê-lo e entregou-se a ele, como se à própria morte. Sua mente conturbada foi-se acalmando, como se seu cérebro estivesse mergulhado em morfina.

Ali, encolhido contra a porta, sobre o chão gelado do quarto, ele sonhou:
Estava num labirinto e de alguma forma ele sabia que ela também estava ali, em algum lugar, tão perdida quanto ele.
Começou a correr desesperado por entre as altas paredes de concreto. Queria chamá-la, mas não conseguia falar. Sentia-se exausto, confuso, sozinho...
E então ele a ouviu. Estava longe, mas ele não tinha dúvidas: era a voz dela! Chamando o seu nome!
A voz se aproximava, mas ele não conseguia resonder. Por mais que tentasse, sua garganta não emitia som algum. Era como se estivesse sufocando! Queria seguir a voz dela, queria gritar para que ela pudesse ouví-lo, mas não conseguia emitir ruído algum, além de um abafado gemido. Esse tormento continuou ainda por algum tempo, até que a voz dela cessou de ecoar.

Ela não o chamava mais! Uma tristeza profundo o envolveu, seguida por uma onda de pânico: a parede atrás dele começava a se mexer! Ele tentava escorá-la com as costas, mas ela continuava avançando, como se estivesse disposta a impressá-lo contra a outra.
Sentiu que seu corpo era empurrado para a frente à medida que a parede se movia e achou que aquele seria o seu fim.
Olhava em volta, mas não via nada em que pudesse se apoiar, nada para segurar, nenhum refúgio possível. Ele agora suava frio...

Então a parede alcançou um ângulo agudo e parou de se mover.
Ele respirou aliviado, mas o milagre maior aconteceu logo depois: ele voltou a ouvir a voz dela! Ali, bem do seu lado, chamando seu nome novamente! Ele olhava em volta, mas apesar de a voz estar agora muito próxima, ele ainda não conseguia vê-la.
Tinha certeza de que ela estava ali, podia até sentir seu perfume!

"Vamos querido, acorde!"

E então ele abriu os olhos. Estava de volta ao quarto, deitado na mesma posição em que fora dormir. A porta agora havia sido aberta e... não era possível!
Ela estava ali, bem na sua frente! Ele levantou-se depressa e a abraçou, como se ainda não acreditasse no que via: "Graças a Deus você voltou! Eu senti tanto a sua falta!"
"É claro que voltei! Você tinha alguma dúvida?"
Ele sentiu-se um pouco envergonhado: "É que demorou tanto! Passou tanto tempo... eu não queria que você tivesse ido!"
"Mas eu tinha que ir! O acidente foi sério! Graças a Deus está tudo bem agora!"
"Eu... nunca havia me sentido tã só, em toda a minha vida!"
"Que exagero! Foi só um final de semana!"

Ele se calou, surpreso com essa declaração.
Ela olhou em seus olhos, com aquele jeito divertido e então... o sorriso! Só que dessa vez não doeu...