No momento que vejo aquele jovem
rapaz, pouco mais que um adolescente espinhento, com sua camiseta de banda de
rock, cabelos compridos e mal penteados, atravessar a porta do bar arrastando
num passo lento seu insignificante corpo de menos de 70 quilos, não posso
conter um sorriso exasperado. Assim como eu previa, esta noite será um
desperdício total.
Tento esconder-me atrás da nuvem
de fumaça de meu charuto, enquanto seus olhos ainda vermelhos de alguma ressaca
percorrem idiotamente o bar procurando por mim. Talvez ele vá embora e me deixe
terminar meu vermouth em paz.
O garoto coça a rala barbicha,
confuso. Claramente não reconheceu ninguém neste bar como a pessoa que sua
imaginação o fazia procurar, mas ao invés de desistir e ir embora, ele aproxima-se
do balcão e pede uma dose de uísque barato.
Neste momento simpatizo com ele
pela primeira vez: é preciso ter pelo menos um pouco de personalidade para se
entrar num local como este, com a intenção de me encontrar, e pedir o uísque
mais barato da casa. Também noto que ele está tentando parar de fumar, pois no
momento que seu copo de bebida é entregue, seus dedos fazem um movimento
involuntário de acomodar na mesma mão do copo um cigarro que não está ali.
Aquele simples movimento leva
minha mente a uma longa viagem no tempo e ali, em meio a toda aquela fumaça e
calor eu posso vê-lo por um momento: meu primeiro “Acerto”.
Aquele havia sido sem duvida o
homem mais tranquilamente perturbado que eu conheci na vida e ele fez exatamente
o mesmo gesto no dia em que lhe paguei um drinque com o restante de seu
pagamento. Velho, com uma pele salpicada de manchas causadas por anos de
exposição ao sol e os olhos inquietos e distantes que eu com o tempo iria
reconhecer no rosto de tantos outros seres humanos viciados em algum tipo de
substancia ou atividade, ele havia vendido sua língua, e com isso, perdera o
gosto em fumar. Beber, no entanto foi um hábito que ele conservou.
- Não é pelo sabor, como eram
meus charutos, mas pela sensação do álcool em minhas veias – ele explicou
naquela letra miúda em seu novo bloco de comunicação.
Com aquele
Acerto eu ganhei meu primeiro e mais frequente cliente: um milionário hipocondríaco
e solitário, que era capaz de tagarelar por horas e horas nas raras ocasiões em
que recebia uma visita. Ele acreditava que, quando uma parte de seu corpo
estava doente, era preciso comer aquela mesma parte de um ser humano saudável e
desta forma ficaria curado.
Eu não
o questionava e nem me importava, assim como os Acertos também não pareciam se
importar com o fim que levariam as suas partes do corpo vendidas. Todo mundo
sempre tem seus próprios motivos pra cometer loucuras ou crimes. Sejam esses
motivos verdadeiros e legítimos, ou apenas desculpas para acalmar a consciência,
eles nunca importam de verdade, a não ser para a pessoa que os criou e utiliza.
Conquistei
muitos clientes e nunca me choquei particularmente com a excentricidade de seus
pedidos. Gosto de me considerar uma pessoa difícil de impressionar. Ainda
assim, alguns Acertos conseguem ser perturbadores.
Desde que entrei para o negócio,
sempre considerei apenas coerente com nosso tipo de sociedade que um homem
tenha o direito de comer aquilo que seu dinheiro puder lhe pagar, desde que
encontre alguém disposto a vender, principalmente aqui em Los Angeles. Esses sempre foram nossos termos: comprar
apenas de uma fonte primária e voluntária.
Também nunca me surpreendeu o
fato de terem pessoas dispostas a vender partes de seu próprio corpo. Afinal de
contas, a quantia certa de dinheiro pode representar muito mais mobilidade do
que uma perna pra alguém que mal tem recursos pra ir ao cinema, por exemplo.
Mas os Acertos não são sempre tão
coerentes. Já tive Acertos tão milionários quanto meus clientes, que queriam se
livrar de partes de seu corpo que lhes causavam culpa, ou que recusavam o
pagamento em dinheiro e queriam apenas presenciar o preparo e consumo de suas
partes vendidas.
Há também os Acertos viciados, e esses são os
piores: perdem todo o dinheiro que recebem em seu vício e depois voltam a me
procurar tentando vender mais partes de si mesmos. Por ética própria, eu recuso
os recuso depois da terceira venda, mas sei que existem muitos outros no
mercado que os aceitam, pagando bem menos e vendendo-os mais barato, até que
não sobre nada, nem mesmo seu cadáver.
Estes são os atravessadores do
negócio marginal. Nunca terão clientes frequentes e nem o estilo de vida que
profissionais como eu alcançam. São perigosos e traiçoeiros. Muitos deles
começaram como clientes e se viciaram tanto na carne humana que foram levados à
falência. Alguns poucos também já foram Acertos e resolveram tentar a própria
sorte de maneira amadora, cheios de rancor.
Eu nunca me preocupo muito com
eles. Já estou no negócio a tempo suficiente para ter amigos nos lugares certos
e segurança além da que o dinheiro pode comprar. Mas garotos como aquele
moleque ali no bar deveriam se preocupar.
Ele termina sua dose de uísque.
Percebo que meu charuto também já se apagou e estou desprovido de minha
cobertura de fumaça. Nossos olhares se cruzam no segundo em que eu alcanço meu
isqueiro mais já é tarde: as chamas em sua camiseta de rock metal já se aproximam de minha mesa.
Seus olhos vermelhos me encaram
sem dúvida nem medo. Talvez um pouco de ódio, mas ainda é cedo pra dizer:
- Já é uma boa temporada para
negócios? – Ele pergunta, demonstrando que aprendeu corretamente a frase código
de cumprimento.
- Isso depende. Oferta ou
investimento? – Respondo minha parte, mesmo já imaginando a resposta.
- Investimento.
- Você... tem certeza? – Retruco,
incrédulo. Na certa esse cabeça de vento entendeu o código errado. Afinal de
contas, de onde um pirralho como esse tiraria os recursos e contatos
necessários para se tornar meu cliente?
- Tenho absoluta certeza. - Responde
ele sentando na cadeira em frente a minha. - Estou à procura de novos investimentos em
gastronomia.
E então eu o encaro mais
atentamente. O cabelo preto é na verdade uma peruca e algumas das espinhas
falsas já começam a soltar de seu rosto devido ao suor. Suas feiçõs parecem
ainda mais jovens e simétricas por baixo da falsa barbicha e seus olhos azuis
me parecem estranhamente familiares, até que eu percebo...
Eu gosto de me considerar uma
pessoa muito difícil de impressionar, mas esse cliente está definitivamente
usando a camiseta errada.