Minhas mãos tremem tanto que eu mal consigo limpar o sangue que cobre os dedos dele. Mergulho mais uma vez sua camisa debaixo da água corrente, enquanto tento ignorar o sentimento de culpa que me sufoca. Eu não posso deixar que ele seja visto dessa forma, não quando foi tudo culpa minha!
O beco está escuro e o barulho da água escoando pelo cano que acabamos de quebrar é o único som que se faz ouvir (além de um tambor surdo martelando em meus ouvidos, mas sei que esse é apenas o meu próprio coração batendo desesperadamente). Meus olhos estão embaçados enquanto observo a água tentar sem sucesso lavar o sangue da camisa em minhas mãos. Sinto um toque suave em meu rosto e percebo que ele está limpando duas lágrimas que escaparam por meus olhos.
Eu não deveria estar chorando na frente dele e isso faz com que eu sinta uma súbta onda de irritação:
- Não me toque com essas mãos sujas de sangue! – Eu o repreendo, sentindo uma pontada de culpa por falar com ele dessa forma.
Ele não parece se ofender:
- Você se preocupa demais.
- Eu não me preocupo! Apenas reconheço que todos os atos possuem consequencias.
- Exatamente! E o que aconteceu essa noite foi apenas uma dessas consequencias. Você não deveria se culpar por isso.
- Eu não me culpo! – Respondo irritada, sabendo que é inútil negar. Ele sempre consegue saber exatamente o que estou pensando.
- Vamos embora. – Ele toma a camisa enxarcada de minhas mãos e a joga por cima de um ombro – Nem que estivesse correndo cloro puro por esse cano você conseguiria limpar essa camisa.
Fico observando por um momento, enquanto gotas avermelhadas escorrem do tecido sobre seu torso, como se fossem as lágrimas... ou pequenos córregos de ira.
- Eu não vou com você. – Respondo finalmente, ainda sem conseguir desviar os olhos das gotas ensanguentadas. – Esse o ponto final dessa estória. Não podemos nos encontrar outra vez, nunca mais.
- Essa escolha sempre foi sua.
Ele vira de costas e começa a se afastar. Fico observando sua silhueta diminuir ao longo de beco escuro enquanto uma onda de pavor cresce em meu peito. Tento me convencer de que estou apenas com medo de ficar sozinha neste lugar sinistro, ou de que é normal sentir-me dessa forma depois da cena que eu acabara de presenciar. Afinal minhas próprias mãos ainda estão manchadas e até meu rosto agora contém traços de sangue onde as lágrimas caíram.
Mas eu sei que a aflição que sinto é na verdade o medo de minhas próprias palavras, medo de nunca mais encontrá-lo de novo. Sinto uma vontade louca de gritar e pedir para que ele me espere, mas ao invés disso, apenas mergulho minhas mãos na água e tento limpar o sangue em meu rosto.
A água gelada me faz recordar os acontecimentos com uma nitidez esntonteante: a noite sem lua ou estrelas, todos os postes da rua apagados... eu batendo na porta dele e ele me observando pela janela, tentando decidir se deveria me deixar entrar outra vez. O ruído de uma risada maldosa partindo das sombras atras de mim... todo aquele sangue (mas eu estava apenas me defendendo)... tudo aconteceu tão rápido! Eu nunca imaginei que seria mesmo capaz de ferir alguém daquela forma, mas meu corpo respondia apenas aos impulsos de ira e frustração que aquela tentativa de agressão havia despertado! E então de repente eu estava de pé, tremula, observando as cinco chaves de meu chaveiro profundamente mergulhadas numa ruína vermelha e borbulhante que havia emitido uma risada há tão poucos instantes atrás...
Afasto-me do cano quebrado, percebendo que agora estou completamente ensopada. Meus pés dançam em poças dentro do tenis e minha roupa se agarra ao meu corpo como uma segunda pele gelada e inflexível. Olho em volta meio desorientada, e por alguns segundos não faço idéia nem ao menos de em que cidade estou.
Então o vejo parado, um pequena silhueta escura e imóvel no final do beco. Sinto alívio arrebatador encher meu peito e caminho em sua direção. Sem pressa, pois sei que ele está me esperando.