sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Sobre Restos e Girassóis

A principio, eu até que aceitei bem o fato de que as coisas não saíram exatamente como eu planejava, mas com essa sacanagem eu juro que não contava! Bom, mas acho que estou colocando o carro na frente dos bois, então deixa eu começar do começo:

Rejeição sempre foi parte da minha vida, mas isso não quer dizer que tenha me acostumado ou me conformado a ela em algum momento.
Sempre tive essa certeza, uma fé quase heróica de que, se eu lutasse bravamente para me fazer notar, a rejeição se daria por vencida e iria embora, me deixando em paz pra ser aceito e satisfeito com o mundo.

Minha primeira rejeição aconteceu na minha primeira semana de vida. Minha mãe simplesmente não foi com a minha cara e me largou num orfanato. E nem foi por falta de condições financeiras ou algum outro drama não! Até porque, na semana seguinte, ela foi a outro orfanato da mesma cidade e adotou um outro bebê! Eu sei disso, porque quando fiquei mais velho acabei conhecendo-a e ela teve a cara de pau de me contar tudo.
Disse que quando eu nasci ela já tinha 40 anos, e resolvera fazer uma inseminação artificial para realizar um sonho de infância: ter um filho de olhos azuis. Ela foi à clínica e escolheu uma ficha de doador que tinha tudo pra dar certo: loiro, olhos azuis, família de imigrantes alemães e o escambal! Só que eu puxei pro lado materno da família. Nasci com olhos e cabelos pretos e ela ficou tão fula da vida por ter gasto 10 mil reais num “produto” que não deu certo, que perdeu a cabeça e me entregou para a adoção.“Você tem que entender – disse ela, sem muito remorso, mas como se estivesse apenas tentando me consolar – que aos 40 anos de idade eu ainda não tinha realizado nenhum dos meus sonhos! Nenhumzinho! Aquela era a minha única chance.”
Eu entendi, mas não a procurei mais. Dei uma ultima olhada no porta-retrato com o filho adotado de olhos azuis que ela mantinha bem grande na sala, e fui embora pra sempre.

Eu nunca havia sido adotado. Quando tive idade suficiente para sair do orfanato, aluguei um quartinho e fui fazer faculdade. Foi lá, aos 22 anos, que conheci a primeira mulher que concordou em namorar comigo. Ela não era nenhuma beleza. Era estrábica e tinha os dentes meio tortos, mas eu me sentia confiante. Achava que pela primeira vez estava começando a espantar a sombra de rejeição que me cercava.
Foi, quando na semana do casamento, ela resolveu me abandonar. Nem teve a decência de me ligar pra avisar! Foi tirar umas “férias” fora da cidade e mandou a irmã me avisar.
Acabei casando com a outra irmã, gorda, que se empenhara em me consolar e criticar a atitude da irmã “sem coração”. Ela sempre parecera apaixonada por mim e eu não ia dar à Rejeição uma oportunidade de grudar no meu pé de novo!
A família ficou meio chocada, a maioria dos convidados ainda achavam que eu ia me casar com a Eduarda quando compareceram à cerimônia, porque eu nem me dei ao trabalho de mandar outros convites ou marcar outra data! Os preparativos pro casamento com a estrábica tinham sido tão estressantes que nem a pau eu ia passar por aquilo tudo de novo, afinal, os convidados nem eram meus mesmo!
Até que foi engraçado ver a cara deles quando a Eva apareceu vestida de noiva e foi caminhando em direção ao altar!

Tive uma vida bem medíocre depois do casamento. Eva não gostava muito de sexo e depois dos primeiros dois meses passou a me rejeitar todas as noites. Tive que engolir, resignado essas rejeições diárias, até que parei de insistir.
Profissionalmente também não vivia nenhum conto de fadas. Dez anos depois de formado, eu ainda trabalhava na única empresa que havia me aceitado, e o pior: ainda na mesma função, porque toda vez que eu me candidatava a uma vaga de um cargo superior, minha aplicação era rejeitada.

Um dia eu finalmente morri!

E esse teria sido um fim digno para a vidinha medíocre que eu tive, se não fosse a sacanagem final: Os vermes se recusavam a comer meu corpo!!!

Foi sem nenhum remorso que descobri que estava morto. Uma voz feminina me chamou de fora do meu tumulo:
-Vem, você está atrasado para a reunião.
- Que reunião?
- De almas penadas, ué! Toda semana nós, as almas que ainda não conseguimos ser “liberadas”, porque ainda tem alguma coisa nos prendendo aqui na terra, nos reunimos pra botar o papo em dia.

Saí do tumulo e ela fez uma cara de desgosto olhando pra mim:
-Nossa, ta fresquinho ainda! Mas não se preocupa, daqui a pouco você começa a deteriorar também.
“Nina” parecia ter sido linda em vida, mas agora estava sem metade dos cabelos e o nariz todo carcomido. Logo fui apresentado ao grupo e descobri que, entre as almas penadas, quanto maior o seu estado de putrefação, maior o seu status!
Mas os vermes não me comiam!
A principio os outros mortos eram legais comigo e fingiam não perceber que eu ainda estava inteirinho, mas aos poucos eu fui começando a ser tratado como aberração. O Armando era quem mais caprichava no preconceito. Apesar de ter chegado um mês depois de mim, na semana seguinte ele já estava cheio de pedaços de carne e cartilagem faltando e as vezes chegava nas reuniões ainda sacudindo algumas baratas e minhocas dos cabelos.
Era humilhante! Será que ele era tão mais gostoso assim do que eu?
Um dia Nina veio falar comigo:
- Olha, eu detesto dizer isso, mas você tem que dar um jeito de começar a se decompor logo, senão os outros vão te expulsar do grupo. Você vai ter que ficar na periferia do cemitério, com as almas que ninguém quer se relacionar. Você sabe, assassinos, os políticos e os advogados.
- Mas... o que eu posso fazer? Os vermes não me querem!!

Nina pareceu se compadecer de mim e me deu uns conselhos. Disse pra eu “assombrar” minha mulher num sonho e mandar ela me trazer flores. Os lírios, que são a planta preferida dos vivos para cemitério, costumam soltar um aroma bem doce quando se decompõem e atraem uma quantidade imensa de insetos.
Fiz o que ela me falou. Assombrei um sonho da Eva e falei com voz zangada que ela tinha abandonado meu tumulo e que eu exigia flores!
A coitada ficou tão assustada no dia seguinte mandou plantar meia dúzia de girassóis em volta do meu tumulo.
Girassóis!
Plantados!
Só a idiota da Eva mesmo! Agora, ao invés de insetos rastejantes eu tinha um monte de abelhas e borboletas em volta do meu tumulo.
Resumindo: eu continuava não comido e ainda por cima tinha a cova mais constrangedoramente "gay" do cemitério inteiro!
Virei piada e fui expulso das reuniões semanais. Fiquei tão puto da vida que soltei os cachorros com a Nina, falei pra ela aprender a não se meter no problema dos outros e me deixar em paz.
Passei a noite sozinho, vagando em volta do meu próprio tumulo, porque não tive nenhuma vontade de ir me juntar ao grupo dos advogados.
Na noite seguinte eu procurei a Nina pra me desculpar pela grosseria,a final, ela só tava querendo ajudar. Mas já era tarde. A alma dela tinha sido liberada.
Com o tempo, eu concluí que minha alma provavelmente nunca seria liberada, porque o que me prendia à terra era exatamente o meu corpo, que não tinha nenhuma mordida de formiga ainda. Desisti de tentar me enturmar com as outras almas (afinal elas estavam só de passagem mesmo) e me tornei o “excêntrico” do cemitério. O cara que as almas infantis morriam de medo e contavam historias de terror a respeito.

Os girassóis vão bem. Tem uma gatinha amarela que adora dormir nas sombras que eles projetam. Dei a ela o nome de Nina.